cela me rassure d'avoir la confirmation qu'il est des choses qui demeurent intactes * philippe besson

one of the secrets of a happy life is continuous small treats * iris murdoch

it's a relief sometimes to be able to talk without having to explain oneself, isn't it? * isobel crawley * downtown abbey

carpe diem. seize the day, boys. make your lives extraordinary * dead poets society

a luz que toca lisboa é uma luz que faz acender qualquer coisa dentro de nos * mia couto





26.9.25

Alma minha

 


Hoje de manhã, vinha no carro a caminho do trabalho, a pensar qual seria o tema de conversa do Largo. Imaginei-nos velhinhas, sentadas à sombra das árvores, nos bancos de madeira castanhos ou nos murinhos circulares brancos, a conversar sobre os assuntos que, há uns meses atrás, pusemos em cima da mesa. Liguei o radio que estava no modo CD e o algarismo começou a piscar. Ia começar a canção número 8. Este CD conheço-o melhor do que a mim mesma e soube instantaneamente os acordes que iriam entrar. Lavei o carro no mês passado, tirei tudo lá de dentro, até a alma, e fiquei com o bólide vazio. Porém, ontem de manhã, fui buscar um disco. Estava na hora de trocar os Best Youth por outra coisa e apanhei aquela antiguidade. Meat is murder.

Piscava então o número 8, eu agora parada no semáforo de Sete Rios ia começar a cantar Well I wonder, enquanto abria o Facebook que me devolveu memórias de anos anteriores. Primeira memória, neste dia há 3 anos era precisamente este disco.

Quantas vezes me acontece isto com as memórias. Nesta data há X anos, o mesmo disco, a mesma música, a mesma camisola, o mesmo verniz, o mesmo café. Fico a pensar que dentro do meu corpo há um relógio que me diz que há dias certos para as coisas. Elas não acontecem por acaso, mas porque é o tempo delas e a prova são as memórias que estão aqui, que aparecem sem eu pedir e não me deixam mentir.

Quero ligar isto à alma, mas não sei bem como fazê-lo. Fui ao dicionário para tentar organizar o pensamento, mas entre a filosófica, a literal, a religiosa, a agnóstica, a figurada, fiquei ainda mais perdida. Gostei das duas primeiras definições 1. Princípio vital 2. princípio que organiza o dinamismo sensitivo e intelectual do ser humano.

O meu corpo conversa com a minha alma. Têm discussões íntimas e ambos (ou serão só um?) têm boa memória. Por vezes sucede pôr-me a pensar se a minha alma foi de outro corpo antes deste eu existir. E quando se trata deste assunto convoco sempre uma aula de filosofia com o professor José Aredes, na Dom Pedro V. Ele contava-nos a história mitológica do Lete, o rio do esquecimento onde as almas mergulhavam para se esquecerem e purificarem da vida anterior, apagavam assim o passado e ficavam prontas para encarnar noutro corpo. 

Anos mais tarde, comprei um livro da Ulmeiro, creio que na altura na Gomes Pereira, que se chamava Rio do Esquecimento, esperando encontrar essa história completa. Enganei-me.

Intrigam-me estas coincidências recorrentes que parecem resultar de uma conversa entre o meu corpo, a minha alma e a minha memória. É como as estações, como se houvesse um tempo para usar o verniz branco nas unhas, semanas  certas para ouvir o Meat is murder, dias precisos para calçar os Vans salmão.

Almas errantes

A curva 

 Gralha Dixit 

 

20.9.25

Mentir com quantos dentes tem na boca

 


Menti ao padre quando me casei.

Menti-lhe quando tive de me confessar antes do casamento. Disse-lhe que não me arrependia de nada. Que não estava a ver o que podia dizer-lhe em confissão, mas que se de facto era preciso dizer alguma coisa seria de que me arrependia de ter dito coisas que tivessem magoado pessoas. Sobretudo pessoas que são importantes para mim e para quem eu sou importante também. 

Menti-lhe porque não quis falar-lhe daquela tarde na Pastelaria Conchita, em que a minha mãe estava sentada na mesa a beber um café e eu, de pé ao lado dela, via, do alto dos meus seis anos, uma criança a correr do balcão para a parede e da parede para o balcão a gritar. Nunca gostei de gritos e, francamente, aquele vai e vem já me estava a irritar. De maneira que nada me pareceu mais fácil do que esticar a perna para fazer uma rasteira ao pequeno e feliz corredor. Caiu no chão e o berreiro foi ainda maior. Pelo corte drástico àquela alegria veloz, pela humilhação que as crianças percebem, pelo mal que alguém lhe quis. Ali, no café do bairro, onde nasci, cresci e ainda vivo, tal como o café, levei uma sova da minha mãe, que me ficou na memória. Ou não estaria aqui agora a falar nisso.

Se me arrependo? Sim, claro.

E neste preciso momento estou a mentir com todos os dentes que tenho na boca, que não são poucos e que o meu sorriso gigante não se coíbe de mostrar.

Naquele ano, naturalmente, eu ainda não tina lido os Contos exemplares, do Max Aub

 

Também já mentiram

Gralha Dixit 

A curva 

Quinta da Cruz da Pedra 

Revolução

 

Foi este o ano que revolucionou a minha relação com o Verão.

Sou uma rapariga do Outono, gosto de folhas castanhas e secas, gosto do cheiro da terra molhada, das primeiras temperaturas frescas, de dormir de janela aberta ao som da chuva e com o edredão até ao nariz. Gosto dos cortinados desviados enquanto vejo as pingas grossas caírem através dos vidros. Gosto de um chazinho quando tenho frio e de ter mais livros do que o resto do ano em cima da mesinha de cabeceira. 

Porém deu-se uma revolução este ano. 

Aguentei o calor, dentro do carro, com quatro pessoas lá dentro, sem ar condicionado, sem janelas atrás e com o vidro do copiloto avariado. Tinha um mês de férias pela frente apenas com uma semana planeada. Pensei que seria o primeiro mês de Agosto em que poderia ficar a descansar três semanas seguidas, ganhando energia para o resto do ano. Já imaginava os pratos a acumularem-se no chão, ao lado do sofá e de garrafas ora em pé ora caídas pelo bowling que o meu gato faria quando perceberia que eu ainda não tinha morrido. As beatas dentro de um cinzeiro de uma não fumadora, a televisão acesa dia e noite. As revistas e livros espalhados nas costas do sofá.

Não eram planos que eu tivesse feito, mas pareceu-me que seria o mais provável que acontecesse. 

Sucede que sem planos somos sempre surpreendidos. 

Se uma pessoa às vezes é capaz de revolucionar uma coisinha ou outra na sua vida isso pode pôr tudo de pernas para o ar. Que exagero só para admitir que agora já gosto de Agosto. Olha o verbo gostar dentro de Agosto.

Bastou uma mensagem para tudo aquecer para além dos 37º que nos acompanharam este Verão. Praias fluviais, barragens, banhos quentes, caipirinhas dentro de água, piqueniques, marisco à beira-mar, festas nas terrinhas, comida maravilhosa, banhos noturnos e sem roupa, na piscina, como se fossemos outra vez adolescentes sem preocupações de quem já vive há meio século. Fins de semana em família, mais fins de semana com amigas, conversas até tarde, rosé, risadas, mimos, descobertas, até jogos da bola no estádio. Como é que uma rapariga podia não gostar do Verão? Deste Verão?

Um mês de agosto assim, nunca tinha tido. 30 dias com o saco vermelho à porta, pronto para pôr só mais quatro pares de cuecas e partir uns dias, sem esquecer de voltar a casa para dar comida ao gato.

Sem querer as coisas foram muito bem feitas. Durante um mês o universo conspirou a meu favor e eu agradeço-lhe muito muito por isso.

Agora falando de coisas sérias, quando ouço a palavra revolução penso sempre e acima de tudo em A B R I L e o quão próximo temos de estar dela porque os tempos não estão para distrações.

 Mulheres revolucionárias:

Carla , A curva

Mariana , Gralha dixit

Rita, Boas intenções 

Maria João, A gata Christie 


18.7.25

Pôr o pé em ramo verde

 


Nunca fui tantas vezes ao dicionário como desde que escrevo com as mulheres do largo

Diz o Priberam que pôr o pé em ramo verde é uma forma informal ou figurada de agir de modo destemido ou descuidado, com total liberdade

Ora, eu sou uma pachorrenta ansiosa. Diz que tenho o ar mais calmo do mundo, mesmo em situações de stress. Os malucos abordam-me no meio da rua e falam-me aos gritos em cima do rosto e eu fico ali numa lengalenga de encantamento de serpentes que os faz virar costas e ir falar com as árvores. 

Mas, amigos, não me queiram ver no trânsito, nem a presenciar situações de injustiça. Não ponho pé em ramo verde. Ponho os dois pés na pradaria inteira. Sobe em mim não sei se a canastra se a adrenalina e eu sou capaz de coisas que nem eu mesma sabia. Orgulho-me e não me orgulho disso. Quando sucede é um impulso, uma coisa irracional, um comportamento sobre o qual eu perdi o controlo

Soube ontem que sou carneiro com ascendente em carneiro. 

Pelo quentinho e fofo, mas cornos torcidos

Não brinquem comigo!

Uah-ah-ah

 

Mais pés em ramos verdes

 A curva

Gralha Dixit 

11.7.25

Terapia

Estudei psicologia na universidade

Acreditava que a terapia nos elevava, nos ajudava a viver com a obscuridade, com a opacidade. Como aquela camada de nuvens que assentava por cima dos telhados das casas dos Alpes e que nos fazia encontrar os raios de sol só a partir dos 1300 m de altitude.

Já fiz terapia várias vezes, sempre porque achei que o amor me ia matar.

Quase matou. De todas as vezes.

Sinto muito as coisas. Tudo em mim é um exagero. A quantidade de vezes que ouço a mesma música, todos os versos que sei de cor e nem sequer vou entrar nos sentimentos.

Nunca encontrei o meu psicólogo ou a minha psicóloga. O primeiro tinha um telefone que tocava quando a hora da consulta terminava e ele dava o assunto por terminado abruptamente e pedia-me 20 contos.

Quando vivi nos Alpes tive consultas com um psicólogo com quem gostava de conversar e me fazia sair de lá mais ligeira. Apesar da barreira da língua, porque quando se fala em sentimentos é bom poder dizer tudo com espontaneidade, ele sabia ouvir e encontrar palavras certas e apaziguadoras para o meu sofrimento. Aqui não era só o amor que me assombrava. Era tudo o que vinha por conseguinte, como diria a minha avó. Os ataques de pânico, a somatização. Tudo o que eu não sabia explicar a mim mesma por palavras o meu corpo dizia através de dores físicas e reais que se manifestavam a toda a hora. Foram anos em que não tive descanso.

Voltei a Portugal, as coisas melhoraram. A geografia também estava subentendida nesta falta de descanso. Arrumei o maior capítulo da minha vida e, pela primeira vez, senti a paz de não estar apaixonada por ninguém a não ser pela minha filha.

Só que depressa, depois de 16 anos de casamento, uma pessoa antiga entrou na minha vida, alojou-se em todos os poros da minha pele, em todos os cantos do meu cérebro. Espalhou-se pelo meu corpo, como se diz para as doenças incuráveis. Não havia nada a fazer. Pelo menos era assim que eu entendia.

Voltei a dar uma hipótese à palavra, durante dois anos.

Durante dois anos paguei para falar de uma pessoa, paguei para me ajudarem a interpretar mensagens, silêncios, palavras, comportamentos. Paguei para, por vezes, ouvir uma palavra de esperança que me fizesse descansar um poucochinho a cabeça. Desses pagamentos, uma parte ia também para falar do meu trabalho e da relação com a minha mãe que se degradava porque a presença dela na minha vida era constante e preciosa e eu não sabia como lidar com essa falta de autonomia aos quarenta anos. Tinha sensação de ser irmã da minha filha. Mas não tinha outra ajuda. Estava zangada porque me tinham proposto um projecto a dois e com a mesma facilidade abandonaram em curso

O meu corpo gritava, todos os dias, cada vez mais alto. Pelo menos de dois em dois dias eu ia para as urgências com uma dor qualquer. Fazia exames. Chorava. Fazia sessões de relaxamento para conseguir falar durante a terapia. O meu coração parecia que não ia parar de acelarar, a garganta fechava-se, a visão desfocava e eu tinha a certeza que ia morrer. Este sentimento ninguém consegue perceber a não ser que passe por ele. Durante dois anos, de quinze em quinze dias ou semanalmente, quando eu já não conseguia viver comigo, e tinha de esconder isso da minha filha, ía às consultas.

Um dia, à uma e meia da manhã senti que estava a deixar de respirar. Enfiei o máximo de ar nos pulmões, acordei a minha filha pequenina in extremis, subi a rampa e cheguei ao hospital dos lusiadas a dizer que não conseguia respirar, que ia morrer.

Deram-me um copinho com um líquido milagroso. Imediatamente, os meus ombros começaram a baixar, eu comecei a derreter e a perceber que estava só a descontrair os músculos. Pensava que sorte tinham as pessoas em poder viver sempre assim, com aquela ligeireza. Sentada na maca do lado estava a minha filha, preocupada naturalmente com a situação. As enfermeiras traziam desenhos par pintar, bolachas para comer, mas a mãe dela estava deitada numa marquesa, tinha-a acordado a meio da noite. Era estranho e intrigante. Veio a minha mãe busca-la e assim que viraram costas eu adormeci. Queria ter ficado ali dormir para sempre. Evitar-me-ia todas as idas aos hospitais e centros de saúde durante a semana que viria. As semanas que viriam. Mas acordei ás 5 da manhã e fui para casa. Dormi mais um pouco e acordei para ir trabalhar.

Outra vez, voltei para as urgências. Tinha decidido finalmente aderir aos fármacos, contra tudo em que acreditava. Não queria enrolar a língua a falar, não queria andar a dormir em pé nem ficar em casa na cama de olhos fechados todo o dia. Na verdade, eu queria. Mas não queria. Tentei e fui parar ao hospital com o coração a bater a um ritmo descontrolado. O tratamento tinha tido efeitos adversos em mim.

Desisti dos fármacos, com medo que me fizessem pior.

Um dia, uma amiga médica disse-me com toda a calma para ir a outra psiquiatra e tomar a medicação durante pelo menos duas semanas. Disse-me par tentar respeitar esse tempo e iria perceber que todas as reações do meu corpo, sempre alerta, se iam acalmar.

Não tinha onde me agarrar mais e fiz tudo direitinho. A minha vida mudou radicalmente. Aquele remédio suprimia tudo em mim, o sofrimento, a alegria, a comoção, o prazer. Convinha-me perfeitamente. Eu não queria sentir nada. Não conseguia chorar, não conseguia ter orgasmos.

Foi a melhor coisa que apareceu na minha vida, naquele momento. Desisti da terapia. Quado olho para trás, acho que não encontrei a psicóloga certa nem fui a paciente ideal. Gostava de conversar com ela, mas nada em mim estava aberto à mudança e, como tal, nada mudou.

Hoje a minha terapia para além dos fármacos é estar sozinha, afundada no sofá a ler um livro que me interessa, no silencio da minha casa.

E não largarei a Paroxetina por nada. 

 

Em terapia:

Panados com arroz de tomate 

Gralha Dixit 

Quinta da Cruz da Pedra 

A curva 

A gata Christie 

2 Dedos de conversa