Adulterei o tempo do verbo.
Desde que escrevo neste Largo e com este Largo, multipliquei o meu índice de expressões. Tenho sempre o dicionário à mão e ando, na semana que antecede a publicação do texto sobre o tema, a magicar no que vou dizer. Acho que não sei filosofar sobre as coisas, embora me considere uma pessoa de filosofias de bolso. Para falar sobre os assuntos tenho sempre de ir buscar um qualquer caso que me tenha sucedido.
A minha filha tem uma colega nova, este ano, de quem gosta muito e com quem se ligou de amizade. A menina mora na nossa freguesia e a primeira vez que a mãe me mandou a morada para eu ir buscá-la para levá-las ao cinema fiquei para a minha vida. Antes de 2016 nunca tinha ouvido falar daquela rua. A partir desse ano, essa rua passou a viver em mim, na minha imaginação, nos meus sonhos, nas minhas saídas noturnas, no mistério, na imprevisibilidade, num desejo descontrolado. Ali vivia um homem que revolucionou a minha vida.
No decorrer dos dias, das tardes e das noites, dava tudo para ter um pretexto para passar ali. Na verdade tinha-os porque, embora a rua me fosse desconhecida até então, muitas lojas e cafés de que gosto gravitavam em torno daquela morada. Nunca ousei ir para ali cirandar sem desculpa, com medo de ser apanhada. Quando para lá ia era por ter um pretexto válido.
Nesse fim-de-semana apanhei a pequena, que morava do lado oposto do passeio, uns números mais acima. As miúdas entraram no bólide e seguimos uns 30 metros. Abrandei a marcha e fiquei a olhar para os estores descidos, empoeirados cujas únicas cores que envergavam eram as da minha memória e, agora, as do painel que dizia vende-se. Segui caminho pensando nas voltas que a vida dá.
Noutra semana, voltei a ir buscar a amiga da minha filha para ir brincar lá a casa. As miúdas entraram no carro na galhofa e eu arranquei com lentidão, abrandando sempre em frente ao número 6. O painel tinha desaparecido. A casa fora vendida. Nesse momento, fui capaz de lhe sentir o cheiro, de imaginar com exactidão a tonalidade da luz àquela hora, dentro da pequena assoalhada onde se vivia.
E porque não há duas sem três, no domingo passado voltamos a combinar brincar e jantar com esta amiga. Eu aguardava que a pequena chegasse e pensava em como as coisas são. Estava ali encostada ao carro, de perna cruzada, à paisana, a olhar para o bairro e para a janela, sem me preocupar se era vista ou não. Antes queria todos os pretextos do mundo para estar ali, fosse a hora certa ou errada ou o sítio certo ou errado e agora o destino queria-me naquela rua, com memórias apagadas de uma casa que provavelmente já pertencia a outra pessoa.
Saiu-me: até o diabo se ri!
Entrei no carro. Abrandei (sou uma rapariga de hábitos). Os estores da janela da cozinha estavam subidos. A casa estava habitada. Como nunca me livrei deste mistério quis deixar a dúvida no ar. Quem estaria ali dentro?
Sei que nunca poderei entrar nesta rua sem me lembrar desses loucos anos.
E quando falo em loucura, não é maneira de dizer.
Outros diabos que riem:
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