Hoje de manhã, vinha no carro a caminho do trabalho, a pensar qual seria o tema de conversa do Largo. Imaginei-nos velhinhas, sentadas à sombra das árvores, nos bancos de madeira castanhos ou nos murinhos circulares brancos, a conversar sobre os assuntos que, há uns meses atrás, pusemos em cima da mesa. Liguei o radio que estava no modo CD e o algarismo começou a piscar. Ia começar a canção número 8. Este CD conheço-o melhor do que a mim mesma e soube instantaneamente os acordes que iriam entrar. Lavei o carro no mês passado, tirei tudo lá de dentro, até a alma, e fiquei com o bólide vazio. Porém, ontem de manhã, fui buscar um disco. Estava na hora de trocar os Best Youth por outra coisa e apanhei aquela antiguidade. Meat is murder.
Piscava então o número 8, eu agora parada no semáforo de Sete Rios ia começar a cantar Well I wonder, enquanto abria o Facebook que me devolveu memórias de anos anteriores. Primeira memória, neste dia há 3 anos era precisamente este disco.
Quantas vezes me acontece isto com as memórias. Nesta data há X anos, o mesmo disco, a mesma música, a mesma camisola, o mesmo verniz, o mesmo café. Fico a pensar que dentro do meu corpo há um relógio que me diz que há dias certos para as coisas. Elas não acontecem por acaso, mas porque é o tempo delas e a prova são as memórias que estão aqui, que aparecem sem eu pedir e não me deixam mentir.
Quero ligar isto à alma, mas não sei bem como fazê-lo. Fui ao dicionário para tentar organizar o pensamento, mas entre a filosófica, a literal, a religiosa, a agnóstica, a figurada, fiquei ainda mais perdida. Gostei das duas primeiras definições 1. Princípio vital 2. princípio que organiza o dinamismo sensitivo e intelectual do ser humano.
O meu corpo conversa com a minha alma. Têm discussões íntimas e ambos (ou serão só um?) têm boa memória. Por vezes sucede pôr-me a pensar se a minha alma foi de outro corpo antes deste eu existir. E quando se trata deste assunto convoco sempre uma aula de filosofia com o professor José Aredes, na Dom Pedro V. Ele contava-nos a história mitológica do Lete, o rio do esquecimento onde as almas mergulhavam para se esquecerem e purificarem da vida anterior, apagavam assim o passado e ficavam prontas para encarnar noutro corpo.
Anos mais tarde, comprei um livro da Ulmeiro, creio que na altura na Gomes Pereira, que se chamava Rio do Esquecimento, esperando encontrar essa história completa. Enganei-me.
Intrigam-me estas coincidências recorrentes que parecem resultar de uma conversa entre o meu corpo, a minha alma e a minha memória. É como as estações, como se houvesse um tempo para usar o verniz branco nas unhas, semanas certas para ouvir o Meat is murder, dias precisos para calçar os Vans salmão.
Almas errantes
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