Estudei psicologia na universidade
Acreditava que a terapia nos elevava, nos ajudava a viver com a
obscuridade, com a opacidade. Como aquela camada de nuvens que assentava por cima dos telhados
das casas dos Alpes e que nos fazia encontrar os raios de sol só a partir dos 1300
m de altitude.
Já fiz terapia várias vezes, sempre porque achei que o
amor me ia matar.
Quase matou. De todas as vezes.
Sinto muito as coisas. Tudo em mim é um exagero. A quantidade
de vezes que ouço a mesma música, todos os versos que sei de cor e nem sequer
vou entrar nos sentimentos.
Nunca encontrei o meu psicólogo ou a minha psicóloga. O primeiro
tinha um telefone que tocava quando a hora da consulta terminava e ele dava o
assunto por terminado abruptamente e pedia-me 20 contos.
Quando vivi nos Alpes tive consultas com um psicólogo com
quem gostava de conversar e me fazia sair de lá mais ligeira. Apesar da
barreira da língua, porque quando se fala em sentimentos é bom poder dizer tudo
com espontaneidade, ele sabia ouvir e encontrar palavras certas e apaziguadoras
para o meu sofrimento. Aqui não era só o amor que me assombrava. Era tudo o que
vinha por conseguinte, como diria a minha avó. Os ataques de pânico, a
somatização. Tudo o que eu não sabia explicar a mim mesma por palavras o meu
corpo dizia através de dores físicas e reais que se manifestavam a toda a hora.
Foram anos em que não tive descanso.
Voltei a Portugal, as coisas melhoraram. A geografia
também estava subentendida nesta falta de descanso. Arrumei o maior capítulo da
minha vida e, pela primeira vez, senti a paz de não estar apaixonada por ninguém
a não ser pela minha filha.
Só que depressa, depois de 16 anos de casamento, uma pessoa antiga entrou
na minha vida, alojou-se em todos os poros da minha pele, em todos os cantos do
meu cérebro. Espalhou-se pelo meu corpo, como se diz para as doenças incuráveis.
Não havia nada a fazer. Pelo menos era assim que eu entendia.
Voltei a dar uma hipótese à palavra, durante dois anos.
Durante dois anos paguei para falar de uma pessoa, paguei
para me ajudarem a interpretar mensagens, silêncios, palavras, comportamentos. Paguei
para, por vezes, ouvir uma palavra de esperança que me fizesse descansar um poucochinho
a cabeça. Desses pagamentos, uma parte ia também para falar do meu trabalho e
da relação com a minha mãe que se degradava porque a presença dela na minha
vida era constante e preciosa e eu não sabia como lidar com essa falta de
autonomia aos quarenta anos. Tinha sensação de ser irmã da minha filha. Mas não
tinha outra ajuda. Estava zangada porque me tinham proposto um projecto a dois
e com a mesma facilidade abandonaram em curso
O meu corpo gritava, todos os dias, cada vez mais alto. Pelo
menos de dois em dois dias eu ia para as urgências com uma dor qualquer. Fazia
exames. Chorava. Fazia sessões de relaxamento para conseguir falar durante a
terapia. O meu coração parecia que não ia parar de acelarar, a garganta
fechava-se, a visão desfocava e eu tinha a certeza que ia morrer. Este sentimento
ninguém consegue perceber a não ser que passe por ele. Durante dois anos, de
quinze em quinze dias ou semanalmente, quando eu já não conseguia viver comigo,
e tinha de esconder isso da minha filha, ía às consultas.
Um dia, à uma e meia da manhã senti que estava a deixar
de respirar. Enfiei o máximo de ar nos pulmões, acordei a minha filha pequenina
in extremis, subi a rampa e cheguei ao hospital dos lusiadas a dizer que não
conseguia respirar, que ia morrer.
Deram-me um copinho com um líquido milagroso. Imediatamente,
os meus ombros começaram a baixar, eu comecei a derreter e a perceber que
estava só a descontrair os músculos. Pensava que sorte tinham as pessoas em
poder viver sempre assim, com aquela ligeireza. Sentada na maca do lado estava
a minha filha, preocupada naturalmente com a situação. As enfermeiras traziam
desenhos par pintar, bolachas para comer, mas a mãe dela estava deitada numa marquesa, tinha-a acordado a meio da noite. Era estranho e intrigante. Veio a minha
mãe busca-la e assim que viraram costas eu adormeci. Queria ter ficado ali
dormir para sempre. Evitar-me-ia todas as idas aos hospitais e centros de saúde
durante a semana que viria. As semanas que viriam. Mas acordei ás 5 da manhã e
fui para casa. Dormi mais um pouco e acordei para ir trabalhar.
Outra vez, voltei para as urgências. Tinha decidido
finalmente aderir aos fármacos, contra tudo em que acreditava. Não queria
enrolar a língua a falar, não queria andar a dormir em pé nem ficar em casa na
cama de olhos fechados todo o dia. Na verdade, eu queria. Mas não queria. Tentei
e fui parar ao hospital com o coração a bater a um ritmo descontrolado. O tratamento
tinha tido efeitos adversos em mim.
Desisti dos fármacos, com medo que me fizessem pior.
Um dia, uma amiga médica disse-me com toda a calma para ir
a outra psiquiatra e tomar a medicação durante pelo menos duas semanas. Disse-me
par tentar respeitar esse tempo e iria perceber que todas as reações do meu
corpo, sempre alerta, se iam acalmar.
Não tinha onde me agarrar mais e fiz tudo direitinho. A minha
vida mudou radicalmente. Aquele remédio suprimia tudo em mim, o sofrimento, a
alegria, a comoção, o prazer. Convinha-me perfeitamente. Eu não queria sentir
nada. Não conseguia chorar, não conseguia ter orgasmos.
Foi a melhor coisa que apareceu na minha vida, naquele
momento. Desisti da terapia. Quado olho para trás, acho que não encontrei a psicóloga
certa nem fui a paciente ideal. Gostava de conversar com ela, mas nada em mim
estava aberto à mudança e, como tal, nada mudou.
Hoje a minha terapia para além dos fármacos é estar sozinha,
afundada no sofá a ler um livro que me interessa, no silencio da minha casa.
E não largarei a Paroxetina por nada.
Em terapia:
Panados com arroz de tomate
Gralha Dixit
Quinta da Cruz da Pedra
A curva
A gata Christie