cela me rassure d'avoir la confirmation qu'il est des choses qui demeurent intactes * philippe besson

one of the secrets of a happy life is continuous small treats * iris murdoch

it's a relief sometimes to be able to talk without having to explain oneself, isn't it? * isobel crawley * downtown abbey

carpe diem. seize the day, boys. make your lives extraordinary * dead poets society

a luz que toca lisboa é uma luz que faz acender qualquer coisa dentro de nos * mia couto





25.4.25

Liberdade

Num dia como o de hoje eu queria falar daquela madrugada, em que ainda não tinha nascido

Do gesto humilde do soldado Salgueiro Maia, quando pousa a sua arma no chão e caminha devagar em direção aos tanques. Da nobre incapacidade dos seus semelhantes o atacarem. 

Do Stefano Accorsi, nos Capitães de Abril, da Maria de Medeiros, a avançar com um lenço branco na mão esquerda.

Dos cravos da Celeste pelo Largo do Carmo. De um símbolo que se tornou imortal.

Da madrugada que Sophia de Mello Breyner esperava, do 'dia inicial inteiro e limpo'

Da voz da Teresa Salgueiro a cantar 'Adormeci com a sensação que tínhamos mudado o mundo', que é a única canção no planeta que me faz chorar.

Do grito de liberdade do Mel Gibson, no filme Braveheart, que me levanta os pelos todos do corpo.

O que me comove na liberdade é a valentia. É podermos decidir de acordo com aquilo em que acreditamos, nem que tenhamos de ir contra muitas coisas e muitas pessoas.

Se eu pudesse regressar ao passado, gostava de poder acordar nessa manhã de alegria, como quem acorda de um sonho formidável que afinal não é mais do que a realidade. 

18.4.25

Despertador

 

É curioso que o tema seja despertador num dia em que ele não toca para mim. É raríssimo. Santa sexta-feira Santa.

A minha relação com os despertadores é gritante e longa. Não sou dessas pessoas cujo corpo está treinado para às 7h47 acordar e levantar da cama. Não. À noite, cada vez que me deito ponho o rádio despertador, daqueles dos anos 70, programado para as 6h30. Verifico, pelo menos duas vezes, que está na opção para tocar e que não vai ser com falinhas mansas e vozes bonitas da telefonia. Não, eu não sou boa para mim. Escolho a opção estridente (antes fosse tridente) para não me deixar embalar. Quando durmo desligo a máquina e, por isso, um despertador não me chega. Deito-me, programando o bicho histérico e começo a tratar do do telefone. Desde que tenho um telemóvel novo, toca com barulhinhos de uma floresta cheia de passarinhos. De maneira que o ponho a tocar antes do outro. Está tudo estudado com estratégia, o radio despertador é a minha última chance de chegar a horas ao trabalho e, graças a Deus, chego sempre, salvo raras excepções que nada têm a ver com o tema de hoje. 

Este trabalho é quase só de verificação porque, na verdade, tudo está feito para tocar todos os dias, de maneira que até nos raros Domingos em que ele pode não tocar, desata aos gritos e isso também sucede quando dormia em casa do meu namorado. Nestas alturas, ele tornava-se o terceiro despertador, acordando-me do meu sono profundo para que desligasse o telefone, que era de madrugada e que eu estava de folga.

E o pior nem é pôr o despertador às 6h30 para na realidade me levantar às 7h45. O pior é que nesses 75 minutos os despertadores tocam a cada 10 minutos desencontrados. De maneira que vou dormindo de cinco em cinco minutos, carregando no snooze até de costas, com o dedo mindinho e, se necessário,  com o pé... eu sei lá... às vezes nem me lembro de ter tocado em botão nenhum.

As pessoas, intrigadas, perguntam-me porque é que eu preciso de fazer isto, porque é que o meu snooze não pode tocar só uma vez? Porque se eu me levantar 'de repente' o meu corpo reage como se tivesse levado um susto e isto é mesmo fora de brincadeiras.

Estou sempre alerta. Aliás, sou injusta quando digo que o meu corpo não está programado para acordar à hora certa. Pode não acordar aos 47, mas  o meu inconsciente sabe programá-lo para me levantar no último minuto que me permite chegar a horas a qualquer lado e para respeitar todo o tipo de deadlines, se quisermos falar de despertadores sem som.

O meu despertador é o meu inconsciente, mas precisa sempre de uma ajudinha. Ou duas.

PS levanto-me nesta sexta-feira Santa de pastelanço total para ir ao quarto tirar uma fotografia que sirva para ilustrar esta publicação e, pela primeira vez, reparo no desenho do bonequinho ao lado da palavra Snooze. E tenho a certeza que este despertador foi feito para mim


O despertador da Calita

O despertador da Carla

O despertador da Marisa

O despertador da Helena

11.4.25

Purgatório

 

O meu primeiro contacto com o purgatório foi através do Gil Vicente. Até ali nada sabia dessa palavra nem de barcas.

Desde então, sempre que estou em compasso de espera para alguma coisa digo com frequência que estou no purgatório, como quem está na paragem e espera pela carreira.

Esta semana falei com uma leitora da mediateca.

Perante as suas olheiras indisfarçáveis, permiti-me meter-me na vida dela. Já a vejo há talvez uns 5 anos, pairando (é a palavra certa) por aqui, sempre de malas atrás, de trabalho em trabalho, de casa em casa, coisas que nunca dão certo. Espanta-me a resiliência dela e a incapacidade de se questionar, que pude observar noutros contextos.  Pergunto-me que pessoa será para além do que lhe posso ver, para a vida lhe ser tão incerta. Está sempre à espera. Espera um novo emprego, espera um apartamento que não tenha bolor, que não tenha colegas de casa indelicados, que não tenha loucos, que seja relativamente grande, que tenha uma cozinha para receber os amigos com pompa e circunstância, porque ela dentro da mala, também guarda sonhos. Está cansada, vejo-lhe no rosto envelhecido, embora esteja longe de parecer a idade que tem. As malas andam com ela e o sorriso também, mas nada a tira do purgatório. Por vezes parece ir dar o passo em direção à glória, mas logo as chamas a apanham.

 

Escrevo estas linhas, mais do que as duas primeiras que estavam programadas e lembro-me do sacrifício de ter que ler Gil Vicente. Atirem-me tomates, mandem-me para o inferno. Mas graças ao coletivo e ao tema desta semana fiquei com vontade de ir revisitar o pai do teatro.

Mais meninas à espera no purgatório

Boas intenções

Panados com arroz de tomate 

A curva

A gata Christie 

Gralha Dixit

2 Dedos de conversa

 

4.4.25

Planta



Sobre plantas tenho cinco ou seis coisas para dizer.

Desde que me lembraram que o tema era planta que ando aqui a tentar descobrir qual era o jingle da manteiga que fazia bem ao coração. Só encontrei Flora, o sabor que a gente adora. Nem há nada de jeito que rime com planta. Na verdade, só me ocorre anta que deve ser qualquer coisa parecido com um pãozinho sem sal e que sem dúvida corresponde a este tipo de manteiga.

Plantei uma árvore quando andava na 2ªclasse, numa escola na Lapa, onde é hoje o restaurante Clube dos Jornalistas. Um dia, já adulta, fiquei a jantar no exterior, no recreio, portanto, e passei a noite a olhar para a flora, mas não fui capaz de a descobrir. Lembro-me da tarde em que a plantámos, eramos uma data de miúdos e, perante o pé minúsculo do arbusto, nunca acreditámos que um dia se tornasse árvore. Fizemos a pergunta e responderam que só dali a 20 anos seria grande. Nesse dia, não sabia ainda projetar-me no tempo, mas achei que era muito trabalho e alarido para não ver resultados imediatos.

Nunca tive a mão verde (la main verte). Morrem-me todas as árvores e plantas quando se trata de a responsabilidade ser inteiramente minha. Uma vez, quando vivia nos Alpes, fiquei incumbida da rega das plantas de uma colega que tinha ido de férias. Quando ela regressou estava tudo morto. Água a mais, Água a menos, nunca saberei. Da mesma forma que não sei pôr sal em quantidades certas na comida. Sou uma mulher com peso e sem medidas.

Hoje namoro com um lindo 'jardineiro'. Conhece o nome de todas as árvores, plantas e pássaros. Sabe como vivem e do que se alimentam. Ensina-me muitas coisas e, desde então, a minha mão começou a ficar esverdeada. Tenho uma orquídea a desabrochar e uma planta que depois de ter sido assassinada pelo meu felino, ressuscitou e agarrou-se à vida. Por isso, sinto-me orgulhosa e crescida. Já posso tomar conta de seres vivos. Não sei quanto tempo vai durar, mas agora estou decidida a viver o presente.

Sobre bonecos no papel, sou desorientada e não sei ler mapas, mas oriento-me com plantas.

Em dois mil e catorze depositaram em mim milhares de sementes. Uma correu mais depressa do que as outras todas, desviou-se dos piores inimigos, veloz, furou o solo e ali ficou, a germinar. Criou raízes, formou-se o caule para a sustentação e vieram as folhas para a respiração e transpiração. Foram precisos nove meses para este ser vivo se transformar no mais belo ser humano, na minha planta para a vida. 

Mathilde. minha árvore. meu jacarandá.

 

Outros canteiros:

na Curva 

na Gralha Dixit

na Quinta da Cruz da Pedra

n' A gata Christie 

nos Panados com arroz de tomate

no Boas Intenções  

nos 2 dedos de conversa

28.3.25

Lugar-Comum


 

Vou já tratar de saber quem é que escolheu este tema. Olha eu a ser politicamente incorreta.

Hoje nem o dicionário me valeu. Ou valeu muito pouco, pronto.

Sobre lugar comum ocorre-me, primeiro, tudo o que é literal: esta casa comum que estamos a construir para nós, embora por enquanto continuemos nas nossas casas. Nesta idade é difícil voltar ao Auberge Espagnol; os transportes públicos, lugares de estudos sociológicos autodidatas e as mesas compridas em certos novos restaurantes, onde toda a gente se senta e come e bebe ao lado uns dos outros quer se conheçam ou não.

 

Mas o dicionário fala em banalidades, trivialidades, ideias aplicáveis a todos os assuntos

Tenho um amigo que fala muito disso e de coisas que se tornaram lugares comuns para ele, opiniões que toda a gente tem semelhantes e no mesmo momento. Por exemplo, que agora toda a gente adore o Nick Cave e a Patty Smith. Que o Wes Anderson e o Jim Jarmusch andem nas bocas do mundo. Que toda a gente vá ver o último Almodôvar (que eu goste bastante) e o Ainda estou aqui (que tenho muita vontade de ver) e que de repente todos adoremos os Santos e paguemos para ir assistir a concertos de música pimba.

Os lugares-comuns são as modas.

Seguimos o rebanho para um lugar comum, guiados por um cão pastor que não conhecemos, mas que vai atrás da carneirada obediente, que não passa os limites sob pena de ser punido.

Lugares-comuns que não passam despercebidos para mim, que ouço a toda a hora são as palavras: narrativa, singular, empatia. Dá-me cabo dos nervos (nerfs, para falar em lugares-comuns, como deve ser). Sou fraquinha.

A moda está em todo o lado e a língua portuguesa não escapa.

Sobre a empatia há dias fazia uma pesquisa bibliográfica e fui ter a um livro que saiu sobre esse tema, precisamente. Dizia que a empatia, considerada como um comportamento moral e altruísta, se tornou política e dissimuladora. Fiquei de pensar nisto e disse-o mesmo aos meus botões.

Eu sou do contra, sou advogada do diabo e sou uma pessoa-lugar-comum. Sou todas as coisas, até digo ‘colectivo’ que também está naquela listinha ali de cima. Mas gosto mais de tudo o que é incomum, sejam lugares, sejam pessoas ou coisas. É isso que me faz ‘sair da minha zona de conforto’ e pensar ‘fora da caixa’ (olha que lugares-comuns tão bonitinhos).

 

Lugar-comum da Calita 

Lugar-comum da Maria João 

Lugar-comum da Marisa

Lugar-comum da Helena

21.3.25

Vizinhos

 

Quando penso em vizinhos a primeira imagem que me vem à ideia é a da minha rua, com a fileira de prédios de cada lado sobre 400m de comprimento, digo eu de cabeça.

No verão, o sol do final de tarde reflete-se nos vidros das janelas e os efeitos são maravilhosos. Os vizinhos estão de tronco nu à janela, as senhoras estendem a roupa (coisas que ainda custam a mudar), os cães vêm espreitar por entre as grades das varandas que não se transformaram em marquises.

Tirando os 10 anos que vivi em França, morei sempre na mesma rua, em São Domingos de Benfica. Não trocaria este bairro por nenhum outro e muito menos nos tempos que correm. Nasci aqui, cresci aqui. Sei os nomes dos comerciantes e alguns sabem o meu nome. Nestes anos, as pessoas que cresceram comigo e com o meu irmão nesta rua continuam a viver ali. É muito fácil convocarmos recordações de quando éramos crianças, de quando a rua ainda não tinha árvores, de quando não havia problemas de lugares de estacionamento e podíamos jogar ao lencinho no meio da estrada e andar de bicicleta quase de olhos fechados e com alguém em cima do volante.

Desde que nasci, no número 15 desta rua e até 2017 (data em que mudei para o número 5)  sempre vivi com os mesmos vizinhos. Não os esqueço. Eramos como família afastada a viver no mesmo prédio. Tínhamos mais proximidade com uns dos que com outros, como em todas as famílias.

O número 15 não tinha rés-do-chão. Tinha uma pequena porta onde, subindo os quatro degraus do patamar, alguns de nós guardavam as bicicletas. Mas este espaço servia essencialmente para a porteira, a D. Maria José, arrumar os baldes, esfregonas e produtos para lavar a escada.

No primeiro esquerdo morava a Dona Ângela, o marido, a Lena e o Rui. A dona Ângela era madeirense, o sotaque dela não enganava ninguém. Lembro-me, do alto do meu terceiro andar, olhar pra baixo e invejar-lhe a varanda espaçosa com espreguiçadeiras. Passavam muito tempo lá fora, sobretudo no verão. Eram vizinhos com sorte. O marido da Dona Ângela morreu, os filhos casaram e foram viver para outros lugares e por fim, faleceu a Dona Ângela, creio que por alturas da minha mudança.

No primeiro esquerdo moravam, e ainda moram, A Dona Delfina e o marido, a Ana e a Suzy. Penso nas razões que me fizeram esquecer os nomes dos vizinhos homens, mas não perco tempo com isso. De qualquer maneira, cada vez que se queria pedir qualquer coisa era: tenho de perguntar à minha mãe. Para coisas mais sérias era o pai que tomava as decisões. Neste apartamento que tinha uma varanda em espelho com a da Dona Ângela, esta família passava pouco tempo, mas havia flores e uma mesa branca, daquelas que parecem bordadas, com cadeiras à volta. As miúdas tinham um cão de raça boxer que passava muito tempo lá fora a ver quem passava. A Suzy tornou-se veterinária e a Ana contabilista. Com os anos aproximei-me mais da Ana e a Suzy acabou por juntar-se e ir viver para longe. A Ana tem gatos e adora-os. Passa as noites a fumar e a fazer contas por causa do trabalho. Sempre a achei um crânio. Quando a minha gata ficou doente, a Ana subia todos os dias de madrugada à minha casa com o seu robe para me ajudar a dar o comprimido à Sidonie, que recusava abrir a boca e se a abria logo cuspia o remédio.

No segundo esquerdo morava uma das minhas amigas de infância, a Sara. A nossa amizade vai ficar para sempre, ainda que não nos encontremos muitas vezes. A Sara vivia com a mãe, a Mariazinha, com o pai, o Vitor, com a caniche, a Nani e com o papagaio, o Jacob, que falava para a rua toda. O Vitor passava muito tempo a ensinar-lhe frases e palavras e o gajo aprendia. Era daqueles papagaios cinzentos, muito feios. Também tinham periquitos. A varanda da cozinha deles era para mim um tormento. Não gostava de pássaros eles queriam à força que eu fizesse festas na cabeça dos periquitos. Mas para quê, se eu não queria e me fazia impressão? Um dia a Mariazinha fechou-se comigo na casa de banho, para me fazer ver que aqueles pequenos bichos não faziam mal a ninguém. Sentou-me ao colo dela e de dentro do bolso da frente do avental tirou um pequeno pássaro amarelo. Desatei a berrar, não sei se pela traição se pelo confronto.

Aos fins-de-semana eles iam todos para o CCL na Ford Transit. Tinham lá uma daquelas tendas muitos grandes com quartos e sala e por vezes convidavam-me para ir com eles. Eu e a Sara eramos inseparáveis e todos os minutos que passávamos juntas, a ver o catálogo da la redoute ou a conversar pelos dias adentro, eram preciosos. Foi com ela que vivi os primeiros amores, foi a minha primeira confidente. Até quando fiquei com varicela fechada em casa ela subia e ficava do outro lado da porta a conversar comigo e a fazer pulseiras de fios coloridos. Sobre a Sara e a nossa amizade tinha tanta coisa para contar, mas não quero fazer esperar os restantes vizinhos.

No segundo esquerdo morava o vizinho Carlos que teve uma primeira esposa, creio que era a Susana. Eles eram muito discretos e raramente estavam em casa. Conheço-lhes os nomes porque muitas vezes o carteiro punha por engano as cartas deles na nossa caixa do correio e porque o vizinho Carlos era político. A Susana foi-se embora e veio outra senhora viver com ele. Era psicóloga e tiveram uma filha, a Rita. Mas eu estava a crescer e a Rita era bebe, de maneira que nunca brincámos. Anos mais tarde o vizinho assumiu um cargo político com maior visibilidade e, se não estava no andar de baixo, entrava-nos pelos televisores adentro.

No terceiro esquerdo morava o meu amigo Artur, a Teresa e o Vitor. Na família deles, o que mais me intrigava era que fossem primos direitos. O Vitor era colega da minha mãe e a Teresa tomava conta de crianças em casa. É uma profissão em vias de extinção. Por aquele patamar passou muita miudagem. Chegavam de manhã com os pais e iam embora ao final da tarde. O Artur terá sido o meu primeiro “namorado” e juntamente com a Sara, passávamos muito tempo a brincar. Um dia a Teresa foi para o hospital. Tinham de lhe ‘substituir’ o coração, que não funcionava bem e o Artur ficou a dormir em nossa casa. A Teresa voltou e o Artur voltou para o quarto dele. Lembro-me de nos momentos de zanga com os pais, o Artur às vezes levar uma trolitada que o mandava pelas escadas abaixo. Ele ria-se às gargalhadas. Já não sei se era ele que se atirava ou não, mas no meio da zanga nem os pais dele conseguiam ficar sérios.

Aos fins-de-semana, quando íamos à piscina do nacional e levávamos a Sara e o Artur era uma ramboia. Que felizes eramos.

No terceiro direito morávamos nós, Joana, João, Lila e o Zé.

O prédio tinha oficialmente três andares, mas no piso de cima ainda tínhamos, no quarto esquerdo, a Dona Maria José, que todas as noites tocava às nossas portas para levar os sacos do lixo e às sextas-feiras ao final da manhã lavava as escada. Nos dias de verão, por causa do calor, fazia a limpeza mais cedo. A Dona Maria José era casada com o senhor Mendes, sapateiro, que arranjava os sapatos dos vizinhos todos, nas traseiras do prédio, que eram quintais abandonados. Naquele que parecia pertencer-lhe tinha uma casinha onde fazia os trabalhos. Creio que chegou a ter galinhas. Aliás, a alcunha do filho, o Luis, que também vivia com eles, era o galinhas, mas não me recordo da origem desse nome. Reza a lenda que naquele terreno onde o senhor Mendes consertava sapatos, havia um poço onde tinha morrido uma criança afogada. Nunca cheguei a saber se era verdade, mas sonhei com isso muitas noites.

Por fim, no quarto direito, que foi uma parte do prédio construída sabe-se lá com que licenças, vivia a Dona Rosa que tinha um sotaque que assobiava e que passava roupa a ferro. Passava a nossa também, porque a minha mãe não tinha tempo para tudo. De maneira que à noite batia-nos à porta e levava cestos cheios de roupa com o cheiro da casa dela que era o da naftalina. Eu não gostava daquele cheiro, mas era importante vestir roupa engomada. A casa da Dona Rosa parecia ter uma assoalhada única ou talvez tivesse um quarto escondido. Era uma casa pequena. Ali no quarto andar, durante o verão, fazia um calor que tornava o ar irrespirável. A Dona Rosa tinha um senhor lá em casa por intermitência, não sei se pelo trabalho dele se pelo facto da relação deles ser assim mesmo. Moderna para aqueles tempos. A Dona Rosa foi a primeira vizinha do prédio a morrer. Teve cancro na mama. A casa dela não voltou a ser ocupada, nos tempos em que vivi no prédio e a minha roupa não voltou a ser engomada por mais ninguém.

 

Em 2017, o meu pai morreu e eu tive de deixar o prédio, porque a casa era alugada e o contrato estava em nome dele. O prédio foi vendido a uma pessoa que achou que o que aquela rua estava mesmo a precisar era de um Hostel.

O prédio começou a ficar degradado, sujo, construíram às quatro pancadas uma recepção, no espaço onde anos antes arrumávamos as bicicletas. Havia não sei quantos caixotes com lixo la dentro, faltava a luz no prédio. Havia barulho. Longe iam os tempos da vida saudável da vizinhança. Porém, alguns vizinhos continuavam a morar ali, partilhando patamares com pessoas que iam e vinham e faziam barulho. Ali não era a casa delas e estavam-se nas tintas para quem lá morava.

Uma tarde, em que fui buscar o correio a casa do Vitor, vi a porta da ‘minha’ casa aberta e pedi para entrar. A sala, onde eu e o meu irmão víamos o clube dos amigos Disney, deitados em cima um do outro no sofá, estava ocupada por quatro beliches cinzentos. O meu quarto e o quarto dos nossos pais eram umas ‘suites’ de extremo mau gosto. A casa de banho já não tinha banheira, a despensa era uma recepção. Fiquei desolada. Sempre achei que as casas pertenciam a quem morava nelas anos e não a quem tinha dinheiro para as comprar.

Felizmente para este prédio veio o COVID e o Hotel foi para o camandro. Creio que a vida voltou ao normal, mas sem a Dona Maria José que regressou à terra e que nos mantinha o prédio sempre impecável a troco do aluguer. Por vezes, pergunto-me se ainda estará viva.

Hoje continuam a morar no número 15 a doce Dona Delfina, a Ana, a Mariazinha e o Vitor.

São os sobreviventes. Vou-me cruzando com eles na rua, perguntam pela menina, pelo meu irmão e pela minha mãe. Estão velhinhos. Conheço-os há tantos anos.

 

estes são os vizinhos

da Carla 

da Marisa 

da Mariana

da Calita 

da Rita

19.3.25

avisos com penso rápido



 penso rápido. quem e que se lembrou de colar velocidade a um doi-doi

hoje o trabalho levou -lhe ao chiado, aonde já não ia há uns bons tempos. enquanto subia a rua da misericórdia e descia a rua do carmo pensava que não tinha perdido nada. tornei-me naquelas pessoas velhas que acham que antes é que era, que os cafés de hoje não têm alma, que são cheios de pirete e nómadas digitais agarrados ao telefone, conectados com o mundo inteiro menos com a pessoa que está à frente deles (como diz o luccini) e que os jovens não sabem fazer nada nem sequer ser. porém tenho uma filha e acho que ela é capaz de tanto. entrei na ponto das artes, na rua ivens, para comprar tinta acrílica e contra todas as minhas teorias fui atendida com excelência por uma rapariga nova. fiz o que tinha a fazer e regressei ao trabalho a pé, assistindo às mudanças que me empurram cada vez mais para o meu bairro onde, agora, se encontram granadas nos canteiros. 
os nómadas estão cá, o digital tomou conta de nós, mas ainda há discotecas com néons em ruas sombrias que nunca se livrarão da fama que tiveram em tempos de marinheiros e de portos e navios.
o fernando pessoa continua na mesma mesa, rodeado de turistas e de duas esplanadas. pergunto-me o que pensaria de lisboa, tal como está agora. teria interesse em conhecer aquela gente? as pessoas mandam parar o eléctrico no meio da estrada para que a fotografia saia como elas querem. olho para a porta onde tantas vezes 'sentamos os rabos' a comer os croissants com chocolate da benard.registo a imagem com os degraus e mando a fotografia para o pl. desço a calçada do combro, há pouca gente porque a tempestade está a aproximar-se. hesito em seguir pela rua do poço dos negros ou pela rua dos poiares de são bento e opto pela primeira. o zapata diz que está encerrado para férias e alguém assinala a apologia do descanso. logo a seguir indica encerramento por motivos de saúde. o coração também serve para aquela justificação. está escrito à mao, numa toalha de mesa, em papel. 
vou subindo e descendo os passeios estreitos para me desviar das pessoas. os meus cabelos voam com o vento. o zapata e a bénard são um pouco do que resta da cidade