cela me rassure d'avoir la confirmation qu'il est des choses qui demeurent intactes * philippe besson

one of the secrets of a happy life is continuous small treats * iris murdoch

it's a relief sometimes to be able to talk without having to explain oneself, isn't it? * isobel crawley * downtown abbey

carpe diem. seize the day, boys. make your lives extraordinary * dead poets society

a luz que toca lisboa é uma luz que faz acender qualquer coisa dentro de nos * mia couto





21.3.25

Vizinhos

 

Quando penso em vizinhos a primeira imagem que me vem à ideia é a da minha rua, com a fileira de prédios de cada lado sobre 400m de comprimento, digo eu de cabeça.

No verão, o sol do final de tarde reflete-se nos vidros das janelas e os efeitos são maravilhosos. Os vizinhos estão de tronco nu à janela, as senhoras estendem a roupa (coisas que ainda custam a mudar), os cães vêm espreitar por entre as grades das varandas que não se transformaram em marquises.

Tirando os 10 anos que vivi em França, morei sempre na mesma rua, em São Domingos de Benfica. Não trocaria este bairro por nenhum outro e muito menos nos tempos que correm. Nasci aqui, cresci aqui. Sei os nomes dos comerciantes e alguns sabem o meu nome. Nestes anos, as pessoas que cresceram comigo e com o meu irmão nesta rua continuam a viver ali. É muito fácil convocarmos recordações de quando éramos crianças, de quando a rua ainda não tinha árvores, de quando não havia problemas de lugares de estacionamento e podíamos jogar ao lencinho no meio da estrada e andar de bicicleta quase de olhos fechados e com alguém em cima do volante.

Desde que nasci, no número 15 desta rua e até 2017 (data em que mudei para o número 5)  sempre vivi com os mesmos vizinhos. Não os esqueço. Eramos como família afastada a viver no mesmo prédio. Tínhamos mais proximidade com uns dos que com outros, como em todas as famílias.

O número 15 não tinha rés-do-chão. Tinha uma pequena porta onde, subindo os quatro degraus do patamar, alguns de nós guardavam as bicicletas. Mas este espaço servia essencialmente para a porteira, a D. Maria José, arrumar os baldes, esfregonas e produtos para lavar a escada.

No primeiro esquerdo morava a Dona Ângela, o marido, a Lena e o Rui. A dona Ângela era madeirense, o sotaque dela não enganava ninguém. Lembro-me, do alto do meu terceiro andar, olhar pra baixo e invejar-lhe a varanda espaçosa com espreguiçadeiras. Passavam muito tempo lá fora, sobretudo no verão. Eram vizinhos com sorte. O marido da Dona Ângela morreu, os filhos casaram e foram viver para outros lugares e por fim, faleceu a Dona Ângela, creio que por alturas da minha mudança.

No primeiro esquerdo moravam, e ainda moram, A Dona Delfina e o marido, a Ana e a Suzy. Penso nas razões que me fizeram esquecer os nomes dos vizinhos homens, mas não perco tempo com isso. De qualquer maneira, cada vez que se queria pedir qualquer coisa era: tenho de perguntar à minha mãe. Para coisas mais sérias era o pai que tomava as decisões. Neste apartamento que tinha uma varanda em espelho com a da Dona Ângela, esta família passava pouco tempo, mas havia flores e uma mesa branca, daquelas que parecem bordadas, com cadeiras à volta. As miúdas tinham um cão de raça boxer que passava muito tempo lá fora a ver quem passava. A Suzy tornou-se veterinária e a Ana contabilista. Com os anos aproximei-me mais da Ana e a Suzy acabou por juntar-se e ir viver para longe. A Ana tem gatos e adora-os. Passa as noites a fumar e a fazer contas por causa do trabalho. Sempre a achei um crânio. Quando a minha gata ficou doente, a Ana subia todos os dias de madrugada à minha casa com o seu robe para me ajudar a dar o comprimido à Sidonie, que recusava abrir a boca e se a abria logo cuspia o remédio.

No segundo esquerdo morava uma das minhas amigas de infância, a Sara. A nossa amizade vai ficar para sempre, ainda que não nos encontremos muitas vezes. A Sara vivia com a mãe, a Mariazinha, com o pai, o Vitor, com a caniche, a Nani e com o papagaio, o Jacob, que falava para a rua toda. O Vitor passava muito tempo a ensinar-lhe frases e palavras e o gajo aprendia. Era daqueles papagaios cinzentos, muito feios. Também tinham periquitos. A varanda da cozinha deles era para mim um tormento. Não gostava de pássaros eles queriam à força que eu fizesse festas na cabeça dos periquitos. Mas para quê, se eu não queria e me fazia impressão? Um dia a Mariazinha fechou-se comigo na casa de banho, para me fazer ver que aqueles pequenos bichos não faziam mal a ninguém. Sentou-me ao colo dela e de dentro do bolso da frente do avental tirou um pequeno pássaro amarelo. Desatei a berrar, não sei se pela traição se pelo confronto.

Aos fins-de-semana eles iam todos para o CCL na Ford Transit. Tinham lá uma daquelas tendas muitos grandes com quartos e sala e por vezes convidavam-me para ir com eles. Eu e a Sara eramos inseparáveis e todos os minutos que passávamos juntas, a ver o catálogo da la redoute ou a conversar pelos dias adentro, eram preciosos. Foi com ela que vivi os primeiros amores, foi a minha primeira confidente. Até quando fiquei com varicela fechada em casa ela subia e ficava do outro lado da porta a conversar comigo e a fazer pulseiras de fios coloridos. Sobre a Sara e a nossa amizade tinha tanta coisa para contar, mas não quero fazer esperar os restantes vizinhos.

No segundo esquerdo morava o vizinho Carlos que teve uma primeira esposa, creio que era a Susana. Eles eram muito discretos e raramente estavam em casa. Conheço-lhes os nomes porque muitas vezes o carteiro punha por engano as cartas deles na nossa caixa do correio e porque o vizinho Carlos era político. A Susana foi-se embora e veio outra senhora viver com ele. Era psicóloga e tiveram uma filha, a Rita. Mas eu estava a crescer e a Rita era bebe, de maneira que nunca brincámos. Anos mais tarde o vizinho assumiu um cargo político com maior visibilidade e, se não estava no andar de baixo, entrava-nos pelos televisores adentro.

No terceiro esquerdo morava o meu amigo Artur, a Teresa e o Vitor. Na família deles, o que mais me intrigava era que fossem primos direitos. O Vitor era colega da minha mãe e a Teresa tomava conta de crianças em casa. É uma profissão em vias de extinção. Por aquele patamar passou muita miudagem. Chegavam de manhã com os pais e iam embora ao final da tarde. O Artur terá sido o meu primeiro “namorado” e juntamente com a Sara, passávamos muito tempo a brincar. Um dia a Teresa foi para o hospital. Tinham de lhe ‘substituir’ o coração, que não funcionava bem e o Artur ficou a dormir em nossa casa. A Teresa voltou e o Artur voltou para o quarto dele. Lembro-me de nos momentos de zanga com os pais, o Artur às vezes levar uma trolitada que o mandava pelas escadas abaixo. Ele ria-se às gargalhadas. Já não sei se era ele que se atirava ou não, mas no meio da zanga nem os pais dele conseguiam ficar sérios.

Aos fins-de-semana, quando íamos à piscina do nacional e levávamos a Sara e o Artur era uma ramboia. Que felizes eramos.

No terceiro direito morávamos nós, Joana, João, Lila e o Zé.

O prédio tinha oficialmente três andares, mas no piso de cima ainda tínhamos, no quarto esquerdo, a Dona Maria José, que todas as noites tocava às nossas portas para levar os sacos do lixo e às sextas-feiras ao final da manhã lavava as escada. Nos dias de verão, por causa do calor, fazia a limpeza mais cedo. A Dona Maria José era casada com o senhor Mendes, sapateiro, que arranjava os sapatos dos vizinhos todos, nas traseiras do prédio, que eram quintais abandonados. Naquele que parecia pertencer-lhe tinha uma casinha onde fazia os trabalhos. Creio que chegou a ter galinhas. Aliás, a alcunha do filho, o Luis, que também vivia com eles, era o galinhas, mas não me recordo da origem desse nome. Reza a lenda que naquele terreno onde o senhor Mendes consertava sapatos, havia um poço onde tinha morrido uma criança afogada. Nunca cheguei a saber se era verdade, mas sonhei com isso muitas noites.

Por fim, no quarto direito, que foi uma parte do prédio construída sabe-se lá com que licenças, vivia a Dona Rosa que tinha um sotaque que assobiava e que passava roupa a ferro. Passava a nossa também, porque a minha mãe não tinha tempo para tudo. De maneira que à noite batia-nos à porta e levava cestos cheios de roupa com o cheiro da casa dela que era o da naftalina. Eu não gostava daquele cheiro, mas era importante vestir roupa engomada. A casa da Dona Rosa parecia ter uma assoalhada única ou talvez tivesse um quarto escondido. Era uma casa pequena. Ali no quarto andar, durante o verão, fazia um calor que tornava o ar irrespirável. A Dona Rosa tinha um senhor lá em casa por intermitência, não sei se pelo trabalho dele se pelo facto da relação deles ser assim mesmo. Moderna para aqueles tempos. A Dona Rosa foi a primeira vizinha do prédio a morrer. Teve cancro na mama. A casa dela não voltou a ser ocupada, nos tempos em que vivi no prédio e a minha roupa não voltou a ser engomada por mais ninguém.

 

Em 2017, o meu pai morreu e eu tive de deixar o prédio, porque a casa era alugada e o contrato estava em nome dele. O prédio foi vendido a uma pessoa que achou que o que aquela rua estava mesmo a precisar era de um Hostel.

O prédio começou a ficar degradado, sujo, construíram às quatro pancadas uma recepção, no espaço onde anos antes arrumávamos as bicicletas. Havia não sei quantos caixotes com lixo la dentro, faltava a luz no prédio. Havia barulho. Longe iam os tempos da vida saudável da vizinhança. Porém, alguns vizinhos continuavam a morar ali, partilhando patamares com pessoas que iam e vinham e faziam barulho. Ali não era a casa delas e estavam-se nas tintas para quem lá morava.

Uma tarde, em que fui buscar o correio a casa do Vitor, vi a porta da ‘minha’ casa aberta e pedi para entrar. A sala, onde eu e o meu irmão víamos o clube dos amigos Disney, deitados em cima um do outro no sofá, estava ocupada por quatro beliches cinzentos. O meu quarto e o quarto dos nossos pais eram umas ‘suites’ de extremo mau gosto. A casa de banho já não tinha banheira, a despensa era uma recepção. Fiquei desolada. Sempre achei que as casas pertenciam a quem morava nelas anos e não a quem tinha dinheiro para as comprar.

Felizmente para este prédio veio o COVID e o Hotel foi para o camandro. Creio que a vida voltou ao normal, mas sem a Dona Maria José que regressou à terra e que nos mantinha o prédio sempre impecável a troco do aluguer. Por vezes, pergunto-me se ainda estará viva.

Hoje continuam a morar no número 15 a doce Dona Delfina, a Ana, a Mariazinha e o Vitor.

São os sobreviventes. Vou-me cruzando com eles na rua, perguntam pela menina, pelo meu irmão e pela minha mãe. Estão velhinhos. Conheço-os há tantos anos.

 

estes são os vizinhos

da Carla 

da Marisa 

da Mariana

da Calita 

da Rita

Sem comentários: