cela me rassure d'avoir la confirmation qu'il est des choses qui demeurent intactes * philippe besson

one of the secrets of a happy life is continuous small treats * iris murdoch

it's a relief sometimes to be able to talk without having to explain oneself, isn't it? * isobel crawley * downtown abbey

carpe diem. seize the day, boys. make your lives extraordinary * dead poets society

a luz que toca lisboa é uma luz que faz acender qualquer coisa dentro de nos * mia couto





11.7.25

Terapia

Estudei psicologia na universidade

Acreditava que a terapia nos elevava, nos ajudava a viver com a obscuridade, com a opacidade. Como aquela camada de nuvens que assentava por cima dos telhados das casas dos Alpes e que nos fazia encontrar os raios de sol só a partir dos 1300 m de altitude.

Já fiz terapia várias vezes, sempre porque achei que o amor me ia matar.

Quase matou. De todas as vezes.

Sinto muito as coisas. Tudo em mim é um exagero. A quantidade de vezes que ouço a mesma música, todos os versos que sei de cor e nem sequer vou entrar nos sentimentos.

Nunca encontrei o meu psicólogo ou a minha psicóloga. O primeiro tinha um telefone que tocava quando a hora da consulta terminava e ele dava o assunto por terminado abruptamente e pedia-me 20 contos.

Quando vivi nos Alpes tive consultas com um psicólogo com quem gostava de conversar e me fazia sair de lá mais ligeira. Apesar da barreira da língua, porque quando se fala em sentimentos é bom poder dizer tudo com espontaneidade, ele sabia ouvir e encontrar palavras certas e apaziguadoras para o meu sofrimento. Aqui não era só o amor que me assombrava. Era tudo o que vinha por conseguinte, como diria a minha avó. Os ataques de pânico, a somatização. Tudo o que eu não sabia explicar a mim mesma por palavras o meu corpo dizia através de dores físicas e reais que se manifestavam a toda a hora. Foram anos em que não tive descanso.

Voltei a Portugal, as coisas melhoraram. A geografia também estava subentendida nesta falta de descanso. Arrumei o maior capítulo da minha vida e, pela primeira vez, senti a paz de não estar apaixonada por ninguém a não ser pela minha filha.

Só que depressa, depois de 16 anos de casamento, uma pessoa antiga entrou na minha vida, alojou-se em todos os poros da minha pele, em todos os cantos do meu cérebro. Espalhou-se pelo meu corpo, como se diz para as doenças incuráveis. Não havia nada a fazer. Pelo menos era assim que eu entendia.

Voltei a dar uma hipótese à palavra, durante dois anos.

Durante dois anos paguei para falar de uma pessoa, paguei para me ajudarem a interpretar mensagens, silêncios, palavras, comportamentos. Paguei para, por vezes, ouvir uma palavra de esperança que me fizesse descansar um poucochinho a cabeça. Desses pagamentos, uma parte ia também para falar do meu trabalho e da relação com a minha mãe que se degradava porque a presença dela na minha vida era constante e preciosa e eu não sabia como lidar com essa falta de autonomia aos quarenta anos. Tinha sensação de ser irmã da minha filha. Mas não tinha outra ajuda. Estava zangada porque me tinham proposto um projecto a dois e com a mesma facilidade abandonaram em curso

O meu corpo gritava, todos os dias, cada vez mais alto. Pelo menos de dois em dois dias eu ia para as urgências com uma dor qualquer. Fazia exames. Chorava. Fazia sessões de relaxamento para conseguir falar durante a terapia. O meu coração parecia que não ia parar de acelarar, a garganta fechava-se, a visão desfocava e eu tinha a certeza que ia morrer. Este sentimento ninguém consegue perceber a não ser que passe por ele. Durante dois anos, de quinze em quinze dias ou semanalmente, quando eu já não conseguia viver comigo, e tinha de esconder isso da minha filha, ía às consultas.

Um dia, à uma e meia da manhã senti que estava a deixar de respirar. Enfiei o máximo de ar nos pulmões, acordei a minha filha pequenina in extremis, subi a rampa e cheguei ao hospital dos lusiadas a dizer que não conseguia respirar, que ia morrer.

Deram-me um copinho com um líquido milagroso. Imediatamente, os meus ombros começaram a baixar, eu comecei a derreter e a perceber que estava só a descontrair os músculos. Pensava que sorte tinham as pessoas em poder viver sempre assim, com aquela ligeireza. Sentada na maca do lado estava a minha filha, preocupada naturalmente com a situação. As enfermeiras traziam desenhos par pintar, bolachas para comer, mas a mãe dela estava deitada numa marquesa, tinha-a acordado a meio da noite. Era estranho e intrigante. Veio a minha mãe busca-la e assim que viraram costas eu adormeci. Queria ter ficado ali dormir para sempre. Evitar-me-ia todas as idas aos hospitais e centros de saúde durante a semana que viria. As semanas que viriam. Mas acordei ás 5 da manhã e fui para casa. Dormi mais um pouco e acordei para ir trabalhar.

Outra vez, voltei para as urgências. Tinha decidido finalmente aderir aos fármacos, contra tudo em que acreditava. Não queria enrolar a língua a falar, não queria andar a dormir em pé nem ficar em casa na cama de olhos fechados todo o dia. Na verdade, eu queria. Mas não queria. Tentei e fui parar ao hospital com o coração a bater a um ritmo descontrolado. O tratamento tinha tido efeitos adversos em mim.

Desisti dos fármacos, com medo que me fizessem pior.

Um dia, uma amiga médica disse-me com toda a calma para ir a outra psiquiatra e tomar a medicação durante pelo menos duas semanas. Disse-me par tentar respeitar esse tempo e iria perceber que todas as reações do meu corpo, sempre alerta, se iam acalmar.

Não tinha onde me agarrar mais e fiz tudo direitinho. A minha vida mudou radicalmente. Aquele remédio suprimia tudo em mim, o sofrimento, a alegria, a comoção, o prazer. Convinha-me perfeitamente. Eu não queria sentir nada. Não conseguia chorar, não conseguia ter orgasmos.

Foi a melhor coisa que apareceu na minha vida, naquele momento. Desisti da terapia. Quado olho para trás, acho que não encontrei a psicóloga certa nem fui a paciente ideal. Gostava de conversar com ela, mas nada em mim estava aberto à mudança e, como tal, nada mudou.

Hoje a minha terapia para além dos fármacos é estar sozinha, afundada no sofá a ler um livro que me interessa, no silencio da minha casa.

E não largarei a Paroxetina por nada. 

 

Em terapia:

Panados com arroz de tomate 

Gralha Dixit 

Quinta da Cruz da Pedra 



5.7.25

Salvação

 

Sentada na esplanada do café mais português de Lisboa, penso naquilo que poderei dizer sobre o tema heroico desta semana quando ficamos de pernas para o ar e vêm-me à ideia duas coisas:

A minha varanda que nos poupou da loucura do confinamento, quando a COVID entrou nas nossas vidas em 2020 e

O amor salva 

 

Sou mesmo bimba!

 

Salvas pela campainha:

Boas intenções 

A gata Christie 

Panados com arroz de tomate 

Gralha Dixit 

A curva 

2.7.25

Não bebo cerveja

 


Hoje venho aqui de falar da cerveja que não bebo.

A cerveja enche-me, incha-me, ao fim de dois canecos entro num processo diurético aborrecido e nada agradável.

Bebo cerveja de vez em quando, se como caracóis ou se quero acompanhar alguém. Em geral prefiro o vinho verde e branco, no verão e o tinto, no inverno.

Se há meses em que o dinheiro não me chega e saio à noite, passo rapidamente à cerveja. Mas cada vez saio menos e por isso poupo dinheiro para as bebidas brancas e amargas

Quando eu era pequena, o meu pai, às vezes levava-me com ele ao café. Pedia uma italiana e ficava ali a fazer as palavras cruzadas. Eu queria ir com ele, mas não tinha nada com que me ocupar. De maneira que fazíamos companhia um ao outro, enquanto eu comia um gelado. De vez em quando, ele perguntava se eu tinha ideia de uma palavra que lhe faltava. Claro que não tinha. Sabia lá eu de contrações de proposições e afins. Depois ele fingia que descobria, embora já a soubesse de início, para me ensinar como é que aquilo funcionava. 

Sentada na cadeira de um café do bairro, com os pés no assento, fazia bigodes com o Corneto de nata ou perguntava ao meu pai se tinha a língua vermelha do Calipo e deixava-me ficar encostada no nosso silêncio confortável, a olhar para quem passava. Depois o meu pai pedia uma imperial, às vezes duas. Sacava do cigarro, puxava o fumo e soprava-o para fora, com a cabeça de lado, dando de seguida dois toques com o polegar, ao de leve, no filtro para fazer cair a cinza. Quando nos cansávamos íamos embora, descíamos a Inácio de Sousa para voltar a casa. 

Numa dessas tardes, caminhávamos serenamente e alguém atirou qualquer coisa que nos caiu aos pés. Eu enervei-me. Sempre fui frágil dos nervos. Olhei para cima e vi um puto a esconder-se. Em ebulição gritei para o telhado 'seu cabrão' e automaticamente o meu pai repreendeu-me chamando-me pelos dois nomes com três pontos de exclamação: Joana Filipa!!! Eu fixava o terraço do último andar para ver quem era o cobarde e poder dizer-lhe na cara, se um dia me cruzasse com ele, o que pensava.

O meu pai deu dois passos em frente, vi-lhe as costas tremerem e percebi que ele não conseguia conter as gargalhadas.

E lá fomos, de mãos dadas, sem moralismos e honrando o nosso apelido 

Não bebem cerveja

Gralha Dixit 

A gata Christie 

Panados com arroz de tomate 

20.6.25

Caramelo

Adoro caramelo. 

Em termos de iguarias é dos meus sabores preferidos nos gelados, sou maluquinha por caramelo de manteiga salgada que escolho, sempre que posso, nos crepes. 

Sempre gostei daqueles caramelos que se iam buscar a Badajoz, sob pretexto de se ir ao estrangeiro. Ainda hoje me pergunto, tantos rebuçados desses depois, como é que ainda tenho os dentes em cima das gengivas.

Houve uma época em que gostava de comprar caramelos numa pequena loja de cafés, que já não existe, na Rua Nova do Almada.

A minha relação com o caramelo é sensorial, afectiva.

Vi o filme Caramelo, de uma realizadora libanesa de que gostei. Achei graça chamar-se assim. O filme, que conta com cinco personagens femininas, passa-se essencialmente num salão de beleza. A cera quente lembra o caramelo. Do resto pouco mais me recordo.

Acho graça que digam que alguma coisa está em ponto de caramelo, para aproximar essa ideia da perfeição. 

Mais recentemente, apaixonei-me pelos Best Youth (que tocam hoje no Kalorama, se puderem não faltem. Há duas músicas que falam de caramelo e que me fizeram pensar que na nossa vida temos afeição por algumas palavras e que, por isso, as dizemos e empregamos muitas vezes: "I know what you can't resist, I put on a show and crave for your, caramel electric kiss", no tema Ace of pleasure e Kiss but don't tell. What's going on inside your head. I'll get to you. You're see-through. Playin' it tough underneath you're caramel. Oh Honeydew. So overdue, no Feelings.

Tirando estas historietas, hoje estava sentada numa esplanada a ler e apareceu-me um Caramelo a falar inglês comigo. Fiquei logo com electricidade nos cabelos. O que se segue pode parecer de mau tom para alguns. A vida não está fácil, tenho consciência e eu ajudo sempre que posso pessoas que vivem na rua. Ajudo primeiro as pessoas mais velhas, que têm menos possibilidades e forças. Mas hoje, na esplanada da Dom Carlos I, apareceram dois homens a pedir. O primeiro com humildade e o segundo com arrogância que, naturalmente, seria sinónimo de outra coisa. Dirigindo-se a mim em inglês, sendo ele português, perguntou com firmeza se não lhe arranjava 5€. Fiquei a pensar nisso: por que razão um pedinte estipula montantes. Por pensar que sou estrangeira e que o meu dinheiro conta menos do que para um português? O desespero? O chico-espertismo? A necessidade de comprar qualquer coisa com um valor certo, tipo um maço de tabaco?

O que quer que seja pensei no momento, talvez porque já andava a cirandar com o tema na cabeça: Olha-me este caramelo! 

Disse-lhe que falava português e que não podia ajudá-lo. Foi-se embora a ralhar comigo. Depois pus-me a pensar porque é que se pode chamar caramelo a um individuo. Ainda dei um salto à Infopédia para conhecer todas as declinações referenciadas relativamente a este vocábulo

Com tanto Caramelo acho que estou a precisar de meio litro de Caramulo 

Foi o post possível. Desculpem, isto não ficou nada de jeito, mas não quero perder o fio à meada

 

Outros pontos de Caramelo

 Gralha Dixit 

A gata Christie 

A curva 


14.6.25

Não somos iguais


Sinto uma bipolaridade nisto da inspiração para escrever. Não me acho uma pessoa opinativa, mas tenho picos de necessidade de ter coisas para dizer e picos de morte, se é que isto pode existir. Por vezes, não tenho nada a dizer sobre o tema sorteado e quando começo a escrever pareço um poço de riqueza onde colares, anéis, pulseiras e brincos dos mais preciosos materiais servem para ornamentar os textos. A maioria das vezes tudo o que escrevo só a mim diz respeito. São histórias minhas. Não sei inventar histórias. Sei ficcionar realidades, mas não inventar do zero. Quando gosto de personagens de livros, fico a pensar na mestria de se saber imaginá-las de A a  Z, de construí-la de lhes atribuir valores e depois de fazer com que todas as acções respeitem essa criação. Ou não. Talvez seja isso que nos desiluda. Uma personagem daquelas nunca poderia ter feito aquilo. Não gostei do fim do livro, o autor podia ter feito assim ou assado porque corresponderia mais às caracteristicas da Elisabete (caramba, que raio de nome. Decerto foi porque a minha filha me dizia agora que a minha mãe e a amiga de infância, quando se encontravam para almoçar só falavam de rainhas e princesas). 

Nos livros sou assim, conservadora. Só sinto prazer em ler coisas nas quais me consiga projectar. Às claras ou às escuras. Quero que aquelas pessoas todas dos livros, segundo as descrições do autor, sigam o caminho que eu, secretamente, imaginei. Por vezes, nem tenho caminhos desenhados, mas sei qual é que não devo seguir. Naturalmente adoro quando o rumo da história está para além da minha imaginação. 

Na vida real sou outra. Aceito os caminhos todos, gosto de ir por estradas que não conheço, de encontrar pessoas que me fazem pensar que são umas e depois são outras. Porque a vida não tem 234 páginas e acaba, tem um número capítulos infinitos até nos cansarmos e nos esquecermos daquele livro e daquelas pessoas.

Tenho lido muito nos últimos dois meses. Há pessoas que têm a teoria de que o tempo para ler se arranja. Mas disponibilidade mental não. E, quando se fala de ter tempo para ler, é dessa disponibilidade que se trata. Esta semana estou de férias. Só me dou conta de quão urgente eram estes dias para mim quando acordo todos os dias perto do meio dia, quando me apercebo que me apetece muito ler, que me apetece ver séries (uma novidade na minha vida pacata), que me apetece sair, um bocadinho só, no bairro. Saio para sentir o perfume desta Tilia, para beber um café, fazer compras e voltar para o sofá. Ontem estive uma hora de volta da cozinha a lavar, estender, limpar, pôr a loiça na máquina, limpar a caixa do gato, por mais roupa na máquina, lavar o chão. Penso que é a única ocasião em que sou capaz de me abstrair. O resto do tempo vivo alerta, com crises de ansiedade controladas por fármacos, porque a psicoterapia não pode tudo. Pelo menos comigo.

Não somos iguais. A Joana que lê e a Joana que vive são diferentes. Como se ler não fosse viver. Pelo menos os livros têm pontos finais e esses sinais gráficos mudam tudo. Nas histórias como na vida.

Não são iguais:

Panados com arroz de tomate

Quinta da Cruz da Pedra

Gralha Dixit

A curva

10.6.25

O homem sem nome

Eu estava sentada a ouvir o Philippe Claudel cujas intervenções eram intercaladas pela tradução simultânea. Olhei para o lado e vi um casal de chapéu de chuva preto a subir pela ala esquerda do corredor da direita.
Na praça azul, que tinha um toldo da mesma cor, corria um ventinho fresco pelas pessoas que estavam sentadas à sombra. Mas nas laterais, o sol batia quente. 
Pensei que aquela moda de se andar de guarda-chuva ao sol me chateava. Sempre houve sol em Portugal e agora toda a gente tinha decido subverter o uso do impermeável.

O homem virou-se. Reconheci-lhe o perfil, o boné, a magreza. Vi uma imagem que nunca tinha sido capaz de convocar, a de um bebé junto ao peito, a que tantas vezes me colei, em anos sem futuro, mas que ainda assim duraram anos. Não foram poucos.
Fui capaz de sentir ternura. Quantas vezes quis que o meu corpo todo se descolasse daquela pele, que o meu coração batesse por outra criatura, boa, capaz, recíproca.
Noutro tempo teria enviado uma mensagem que lhe desse a entender que estava por perto, como alguém que espreita atrás de uma árvore. Mas achei que aquela imagem devia ser suficiente para não voltarmos a repetir mensagens inesperadas, em qualquer dia do ano, a qualquer hora da noite. Era preciso apagar isso do presente. 

Tantos anos alimentados pela incerteza, pelo segredo, pelo imprevisto, pelo mistério. Nada concreto, só palavras que se escapavam pelos dedos, como a água que nos lava as mãos, e que foram tão capazes. Mas nunca suficientes. 
Nesses anos todos desejei que me arrancassem o músculo. Não queria mais sentir e agora, estava ali a olhar, com todo o tempo do mundo, o vento a trazer-me dois fios de cabelo para a frente e o perfil dele a olhar para o palco. Estou imóvel na cadeira, vejo-lhe o olhar inexpressivo. Sempre o mesmo. Mas fixo.
Sinto alívio e pergunto-me como fui capaz de gostar tanto daquela pessoa. Até à destruição. 

Às vezes acho que faço desta história mais do que aquilo que ela realmente foi.
Mas conformo-me e aceito que é impossível subestima-la, porque ela me trouxe coisas que nunca tinha conhecido antes.