cela me rassure d'avoir la confirmation qu'il est des choses qui demeurent intactes * philippe besson

one of the secrets of a happy life is continuous small treats * iris murdoch

it's a relief sometimes to be able to talk without having to explain oneself, isn't it? * isobel crawley * downtown abbey

carpe diem. seize the day, boys. make your lives extraordinary * dead poets society

a luz que toca lisboa é uma luz que faz acender qualquer coisa dentro de nos * mia couto





14.6.25

Não somos iguais


Sinto uma bipolaridade nisto da inspiração para escrever. Não me acho uma pessoa opinativa, mas tenho picos de necessidade de ter coisas para dizer e picos de morte, se é que isto pode existir. Por vezes, não tenho nada a dizer sobre o tema sorteado e quando começo a escrever pareço um poço de riqueza onde colares, anéis, pulseiras e brincos dos mais preciosos materiais servem para ornamentar os textos. A maioria das vezes tudo o que escrevo só a mim diz respeito. São histórias minhas. Não sei inventar histórias. Sei ficcionar realidades, mas não inventar do zero. Quando gosto de personagens de livros, fico a pensar na mestria de se saber imaginá-las de A a  Z, de construí-la de lhes atribuir valores e depois de fazer com que todas as acções respeitem essa criação. Ou não. Talvez seja isso que nos desiluda. Uma personagem daquelas nunca poderia ter feito aquilo. Não gostei do fim do livro, o autor podia ter feito assim ou assado porque corresponderia mais às caracteristicas da Elisabete (caramba, que raio de nome. Decerto foi porque a minha filha me dizia agora que a minha mãe e a amiga de infância, quando se encontravam para almoçar só falavam de rainhas e princesas). 

Nos livros sou assim, conservadora. Só sinto prazer em ler coisas nas quais me consiga projectar. Às claras ou às escuras. Quero que aquelas pessoas todas dos livros, segundo as descrições do autor, sigam o caminho que eu, secretamente, imaginei. Por vezes, nem tenho caminhos desenhados, mas sei qual é que não devo seguir. Naturalmente adoro quando o rumo da história está para além da minha imaginação. 

Na vida real sou outra. Aceito os caminhos todos, gosto de ir por estradas que não conheço, de encontrar pessoas que me fazem pensar que são umas e depois são outras. Porque a vida não tem 234 páginas e acaba, tem um número capítulos infinitos até nos cansarmos e nos esquecermos daquele livro e daquelas pessoas.

Tenho lido muito nos últimos dois meses. Há pessoas que têm a teoria de que o tempo para ler se arranja. Mas disponibilidade mental não. E, quando se fala de ter tempo para ler, é dessa disponibilidade que se trata. Esta semana estou de férias. Só me dou conta de quão urgente eram estes dias para mim quando acordo todos os dias perto do meio dia, quando me apercebo que me apetece muito ler, que me apetece ver séries (uma novidade na minha vida pacata), que me apetece sair, um bocadinho só, no bairro. Saio para sentir o perfume desta Tilia, para beber um café, fazer compras e voltar para o sofá. Ontem estive uma hora de volta da cozinha a lavar, estender, limpar, pôr a loiça na máquina, limpar a caixa do gato, por mais roupa na máquina, lavar o chão. Penso que é a única ocasião em que sou capaz de me abstrair. O resto do tempo vivo alerta, com crises de ansiedade controladas por fármacos, porque a psicoterapia não pode tudo. Pelo menos comigo.

Não somos iguais. A Joana que lê e a Joana que vive são diferentes. Como se ler não fosse viver. Pelo menos os livros têm pontos finais e esses sinais gráficos mudam tudo. Nas histórias como na vida.

Não são iguais:

Panados com arroz de tomate

Quinta da Cruz da Pedra

Gralha Dixit

A curva

10.6.25

O homem sem nome

Eu estava sentada a ouvir o Philippe Claudel cujas intervenções eram intercaladas pela tradução simultânea. Olhei para o lado e vi um casal de chapéu de chuva preto a subir pela ala esquerda do corredor da direita.
Na praça azul, que tinha um toldo da mesma cor, corria um ventinho fresco pelas pessoas que estavam sentadas à sombra. Mas nas laterais, o sol batia quente. 
Pensei que aquela moda de se andar de guarda-chuva ao sol me chateava. Sempre houve sol em Portugal e agora toda a gente tinha decido subverter o uso do impermeável.

O homem virou-se. Reconheci-lhe o perfil, o boné, a magreza. Vi uma imagem que nunca tinha sido capaz de convocar, a de um bebé junto ao peito, a que tantas vezes me colei, em anos sem futuro, mas que ainda assim duraram anos. Não foram poucos.
Fui capaz de sentir ternura. Quantas vezes quis que o meu corpo todo se descolasse daquela pele, que o meu coração batesse por outra criatura, boa, capaz, recíproca.
Noutro tempo teria enviado uma mensagem que lhe desse a entender que estava por perto, como alguém que espreita atrás de uma árvore. Mas achei que aquela imagem devia ser suficiente para não voltarmos a repetir mensagens inesperadas, em qualquer dia do ano, a qualquer hora da noite. Era preciso apagar isso do presente. 

Tantos anos alimentados pela incerteza, pelo segredo, pelo imprevisto, pelo mistério. Nada concreto, só palavras que se escapavam pelos dedos, como a água que nos lava as mãos, e que foram tão capazes. Mas nunca suficientes. 
Nesses anos todos desejei que me arrancassem o músculo. Não queria mais sentir e agora, estava ali a olhar, com todo o tempo do mundo, o vento a trazer-me dois fios de cabelo para a frente e o perfil dele a olhar para o palco. Estou imóvel na cadeira, vejo-lhe o olhar inexpressivo. Sempre o mesmo. Mas fixo.
Sinto alívio e pergunto-me como fui capaz de gostar tanto daquela pessoa. Até à destruição. 

Às vezes acho que faço desta história mais do que aquilo que ela realmente foi.
Mas conformo-me e aceito que é impossível subestima-la, porque ela me trouxe coisas que nunca tinha conhecido antes.

6.6.25

Terra


 

O que eu gostava de poder viver de escrever pensamentos sempre que estou a observar as pessoas num sítio qualquer. Há dias estava no aeroporto, aguardava a chegada de um escritor francês que veio para uma série de eventos em torno do livro.

Enquanto esperava que o avião aTERRAsse, observava a multidão, que não dava um segundo de descanso à porta de saída.

Houve um tempo em que me sentava de propósito no banco da estação de metro do Rossio para ver quem entrava e saia do metro. Essa actividade trazia-me paz e algum frisson, porque acabava sempre por me surpreender e ver alguém que há muito não via ou que, secretamente, esperava cruzar.

Empoleirada com a elegância possível no corrimão e com os olhos postos no retângulo aberto, imaginava de onde vinham as pessoas. Pelas roupas, uns viriam, decerto, dos países nórdicos; outros, então, da praia e outros do esqui. Pela rapidez do passo e desenvoltura no espaço, via aquelas que estariam habituadas a frequentar os aeroportos, pela pouca bagagem aquelas que fizeram uma ida e volta por uma qualquer emergência ou até para resolver algum assunto rápido mas cuja presença física era indispensável. Havia os que tinham pessoas à espera e varriam a plateia com os olhos. Havia os que não sabem que são esperados e se emocionam ao cruzar um olhar e um aceno. Havia os que sabem que nunca têm ninguém à espera deles em lado nenhum e saem rapidamente de olhos baixos. Havia quem, ao meu lado, não aguentasse a ansiedade e perguntasse a quem saía de onde vinha aquele vôo. Havia ramos de flores, pessoas com pancartas na mão, turistas que sabiam que eram aguardados por referentes das agências de viagens. E havia pais que saltavam a barreira para abraçar os filhos, familiares que aguardavam quem viesse viver para mais perto. Emocionei-me.

Era capaz de ficar ali, assim, só a pensar em assuntos não sérios (serão?), a ver passar a gente rolar com as suas malinhas, imaginando a vida que não tenho.

Desço à terra. Na verdade, pouco saio dela. Tenho medo de aviões o que me impede de viajar e conhecer sítios novos. Gosto de ter os pés no chão. Há gostos para tudo. Pés no ar, só em mergulhos, em saltos em altura. E debaixo dos lençóis. Nesta matéria, acho que não há pés na terra que me valham. Falho com uma pinta invejável, porque devia saber tê-los bem assentes, mas sou demasiado apaixonada. Apaixonada por ínfimos pormenores dos quais não me consigo livrar durante muito tempo. Ando meses com a cabeça nas nuvens.

Hoje de manhã, pensava, no duche, que não tinha os pelos do corpo tão compridos há mais de dez anos. Mas que dois meses depois talvez esteja na altura de cortá-los. Escondem as tuas impressões que esfrego todas as manhãs com cuidado, mas não saem. Parecem tatuadas.

De manhã falava com uma amiga sobre amores e desamores. Falávamos da pressa com que algumas pessoas saem das nossas vidas, como o quadro elétrico que se desliga no final das férias, como as pilhas que pomos no lixo sem saber se ainda podiam funcionar. E então pensei que as impressões digitais ainda lá estavam porque eu as acariciava em vez de as esfregar com vigor.

Nada disto é terrestre. Mas para falar da terra tem que se falar de tudo o que nela assenta. Grave, agudo ou esdrúxulo. 

 

Noutras partes do globo

A curva

A Gralha Dixit 

23.5.25

Pantufas

 
Desde que iniciámos este colectivo que não leio os textos das minhas camaradas antes de escrever o meu para não me sentir influenciada. Mas vou lendo os comentários e percebendo, mais ou menos, o rumo que as publicações delas seguiram ou seguirão. 
Hoje o tema é pantufas e na minha cabeça (ou nos meus pés) é um tema macio, quentinho, ronronante. Porém, creio que foi tratado com bastante afinco e seriedade por elas e sinto um certo pudor em vir para aqui falar de banalidades e dizer que passo a semana à espera dos dias de pantufas, que não uso, nem no inverno, mas que idealizo como uma forma de descanso, de preguiça, de procrastinação. Que anseio pelo respirar fundo que alivia, pelo movimento do corpo que se ajeita do sofá para encontrar a forma há muito desenhada. Pelos pequenos dedos dos pés que se agitam de prazer antes de abrir o livro na página 43 ou antes de iniciar o filme que estava só à espera daquele instante par ser visto. Pelo  cheiro do bolo de iogurte que farei durante a pausa nestes pequenos prazeres, antes de o encontrar novamente na fatia de bolo, macio, que saiu das minhas mãos. As plantas que pedem água e as pantufas que deixam o tempo de observar as folhas novas. 
Tudo isto para mim representa a palavra pantufas. Até o cão da Anita e todos aqueles que vieram depois com o mesmo nome reúnem todos estes pequenos nadas que são tanto.
Mas o verão está aí à porta. As pantufas são substituídas pelas chinelas. Os dias têm outra textura e outra temperatura. Enquanto estamos nesta zona cinzenta uso chinelos abertos com meias, esperando ter o melhor dos dois mundos.

Pantufaria da avenida:
 

Gralha Dixit 

Boas intenções

A gata Christie 

20.5.25

Água mole em pedra dura

 

Mais um tema que mete água. 

Resistência, perseverança, tenacidade, não são comigo. À mínima dificuldade viro as costas e digo que aquilo não é para mim. Não tenho feitio para isso. Quem acredita na astrologia diria ah e tal não pareces nada ser carneiro. Mas sou e é uma prova de que os signos não sabem nada (ou tudo?) sobre nós, que não podem meter toda a gente no mesmo saco astrológico. Ai é? Vou conseguir! não é comigo. E não me gabo de tal desleixo, desligamento, preguiça, chame-se o que se quiser. Acho que a insistência não me leva a bom porto ainda que entre insistência e resistência estejam longe de representar a mesma coisa e que sem insistência nunca nada foi para a frente. Quando não me querem ou não querem as minhas ideias ou as minhas reivindicações, justificações, digo-lhe para levarem a bicicleta. Porque aquela bicicleta não é para o meu tamanho nem a minha para o tamanho deles. E não é que eu ache que as minhas ideias são melhores ou que não goste da ouvir e pensar nas ideias dos outros, pelo contrário, gosto muito. Mas não me bato para levar a minha adiante.

Porém, sou teimosa. Ah, os carneiros são teimosos. Fico ali a bater na mesma tecla, quando acho que tenho a certeza. Mas teimosia e insistência também não são exactamente a mesma coisa. Uma é mais deficiente do que a outra.

Um exemplo de tenacidade que tenha dado frutos comigo? Não tenho.

Mentira! Tenho tenho. Cada vez que me passo da cabeça porque vejo que estão claramente a gozar comigo, por exemplo, em lojas onde compro coisas estragadas e vejo a má fé dos funcionários e dos gerentes ponho a mão à cintura. Quando me vendem bolos do dia anterior abro as narinas. Quase sempre dá frutos. Mas nestes casos já cheguei a um ponto tal que água não precisa de bater muito na pedra. Chego ao balcão já em erupção.

É muito complicado isto da Água mole em pedra dura. E o que é isso da água mole, afinal de contas? 

A água é macia, penso quando deixo a ponta dos dedos debaixo da torneira e me concentro no prazer de sentir aquela transparência nas mãos. 

Tudo é um pau de dois bicos, mas como eu sou de 22 de março ainda tenho um bocado da moleza do peixe e da dureza do carneiro.

Meter água

 


Para não faltar aos compromissos venho aqui deixar este bilhetinho à la composição da primeira classe

Quando penso neste em meter água a primeira história que me vem à ideia é a do aniversário do primo Luis. Organizava-se uma festa de aniversário surpresa, em honra dos seus 50 anos, portanto, tudo muito secreto e às escondidas. A família criou, à parte, um grupo whatsapp para o efeito e andavam todos entusiasmado com os pormenores quando eu me lembro de perguntar qualquer coisa. Só que me enganei no chat e, em vez do grupo da festa, enviei uma mensagem no grupo da família onde estava, claro, o primo Luis.

Meti água e o doce só pedia natas.

8.5.25

Trabalhadora

 


No dia da trabalhadora falhei. Não fiz o TPC. Não apareci à reunião. Porém era um dia importante. No dia do trabalhador não trabalhei. Foi também para isso que se fez o primeiro de maio. Primeiro de Maio tem um peso muito maior do que 1 de maio.  

Podia vir aqui falar da responsabilidade feminina em todos os trabalhos, mas não me apetece falar nisso. Hoje estou boreout, como li ontem num sítio qualquer. A informação é tanta que uma pessoa já não sabe onde lê o quê. Preparem-se que eu hoje estou um verdadeiro clichê. Suspeita-se que o boreout está do lado oposto ao burnout, mas há dúvidas quanto a isso. Em todo o caso, são conceitos novos que fazem parte da vida profissional. Da labuta. O trabalho dá cabo da vida de uma pessoa. Onde é que já se viu numa sociedade avançada uma pessoa trabalhar cinco dias e folgar dois? Precisávamos de outro primeiro de maio para resolver esta questão. É que nem cinco nem quatro. Avançamos a passinhos pequeninos, como as crianças que metem um pé à frente o outro para medirem o tamanho da baliza improvisada. Daqui a vários anos, quando já não estivermos cá e se estudar o nosso tempo nos livros de história, quero acreditar que os filhos dos filhos dos filhos dos filhos dos nossos filhos vão perceber que não nascemos para trabalhar, mas para pensar, para ler, para ver passar as estações do ano et j’en passe ou então para viver como os gatos. Quem vos diz isto é a mesma que sempre apregoou que nunca seria capaz de não trabalhar. Mas a idade é um posto sábio. Por isso, sim, venha a tecnologia fazer tudo por nós, não precisem de mais pessoas para trabalhar para que possamos dedicar-nos às coisas que são realmente importantes.

Guardem as notas do monopólio, porque na minha realidade vão ser precisas. 

Mais trabalhadoras

2 dedos de conversa

A gata Christie 

Quinta da Cruz da Pedra

Gralha Dixit 

Panados com arroz de tomate

Boas intenções 

29.4.25

Houvesse mais dias sem electricidade


Eram 11h28 o meu irmão estava a ligar-me e eu a dizer "estou? estou?" e ele nada. 

Desliguei e compus o número dele. O telefone descontava os segundos de quem atendeu, mas nenhuma voz do outro lado. Poucos minutos depois dlim dlom, e minha vizinha tocava -me à porta a perguntar se eu tinha luz. Acendi o interruptor do corredor e nada. Na cozinha a mesma coisa.
Nesse momento ainda havia internet, o grupo WhatsApp do trabalho indicava falta de energia. De Santos para São Domingos de Benfica ainda é uma distância larga e não era coincidência. 

 

Entretanto as notícias começaram a chegar. Decidi ir à rua comprar uma moldura. Há muito que tinha isso na minha lista de coisas a fazer e,  numa manhã sem luz, achei que era o momento certo. Deixei lá o desenho e fiquei a espera do orçamento, que a falta de electricidade não permitia no momento. Achei que talvez fosse bom ir ao supermercado. A minha filha, do alto dos seus 10 anos, há tempos tinha-me falado do kit de sobrevivência e eu achei que tínhamos tempo de pensar nisso. Os miúdos hoje pensam em mais coisas do que nós. Fui andando pelas ruas, estavam muito movimentadas. Tanta gente que deve estar em teletrabalho, portanto, invisíveis para a vizinhança e que aparece em casos de emergência. Porém o movimento não indicava qualquer preocupação, apenas prevenção ou oportunismo para fazer uma pausa no trabalho enquando o dia não volta ao normal. 


Muita gente à janela, os vizinhos a conversar, ora à porta da rua ora de janela para janela. Toda a gente tem suposições mas ninguém sabe ao certo o que se passa. Fala-se em ataques cibernéticos, fala-se em falha na Europa, fala-se em 72h possíveis sem electricidade. Mas seria verdade? Ninguém sabia.
Os cafés da freguesia continuavam abertos, contrariamente aos supermercados que logo fecharam portas. As pequenas mercearias de rua, muitas vezes exploradas por comunidades de outras nacionalidades, salvavam os mais ansiosos, como em tantas outras circunstâncias. Nas frutarias já não vendem frutas nem legumes ao kg, mas apenas em caixas ou por sacas, porque não têm forma de pesar. Ao meu lado na rua, passa um senhor com uma balança antiga, de ponteiros. As pessoas desenrascam-se e é incrível assistir a essa capacidade. 


As lojas dos vizinhos chineses, previdentes, já têm as velas, os isqueiros, as pilhas e as lanternas em cima do balcão dos pagamentos. Os multibancos estão kaput, não há dinheiro para ninguém. Quem tem notas debaixo do colchão, hoje, é que se safa. O nosso Sherif ainda teve multibanco algum tempo. Pessoas que têm sempre os aparelhos carregados.


Há fila em todo o lado e uma sensação de déjà vu.
 

A tarde vai decorrendo, o tracinho da bateria do telemóvel vai diminuindo. Eu leio e descanso, é tudo o que posso fazer. Também durmo a sesta. Quando acordo lá fora está tudo na mesma, só que agora já não temos dados móveis. Estamos totalmente desconectados do mundo.
Não sabemos o que se passa. Os semáforos não funcionam, ouço muitas ambulâncias. Decido ir buscar a minha filha mais cedo do que tinha previsto. Pelo caminho vejo as ruas ainda mais cheias do que de manhã. Não há cafés para beber, mas as mesas enchem-se de cervejas, as pessoas juntam-se em frente às pastelarias e restaurantes. Há garrafas de vinho e cálices em cima das caixas de electricidade e pequenos ajuntamentos, nesses sítios improváveis também. 


De repente somos seres sociais. Sem telefone, nem computadores, nem redes sociais voltamos a ser seres sociais, vamos ao encontro de pessoas que conhecemos e que não conhecemos. Precisamos desse contacto, de saber , de trocar ideias com  pessoas que nos liguem ao mundo.
Sem luz, Lisboa parece estar em festa. Até nos bairros mais familiares e ditos envelhecidos. Percebemos que afinal temos vizinhos que nunca tínhamos visto. Falamos com a senhora que está à janela, de expressão assustada e dizemos-lhe que não se preocupe, que está tudo a voltar ao normal, que a electricidade já chegou a Odivelas e aos poucos chegará aqui. E como é que sabemos isso? Porque durante esta abstinência a rádio nunca nos deixou, esteve sempre connosco. Como as velas, como os livros, como os jogos de cartão e os livros de pintar.


Vou deixar uma amiga da minha filha a casa e ao voltar vemos a Estrada da Luz iluminada. Com um nome destes devia ter prioridade. Chegamos à nossa rua já com candeeiros acesos também. Mas as vozes do convívio não foram para casa. Ficaram ainda a ecoar. 


Apagam-se as velas. 


Amanhã tudo deverá voltar ao normal

25.4.25

Liberdade

Num dia como o de hoje eu queria falar daquela madrugada, em que ainda não tinha nascido

Do gesto humilde do soldado Salgueiro Maia, quando pousa a sua arma no chão e caminha devagar em direção aos tanques. Da nobre incapacidade dos seus semelhantes o atacarem. 

Do Stefano Accorsi, nos Capitães de Abril, da Maria de Medeiros, a avançar com um lenço branco na mão esquerda.

Dos cravos da Celeste pelo Largo do Carmo. De um símbolo que se tornou imortal.

Da madrugada que Sophia de Mello Breyner esperava, do 'dia inicial inteiro e limpo'

Da voz da Teresa Salgueiro a cantar 'Adormeci com a sensação que tínhamos mudado o mundo', que é a única canção no planeta que me faz chorar.

Do grito de liberdade do Mel Gibson, no filme Braveheart, que me levanta os pelos todos do corpo.

O que me comove na liberdade é a valentia. É podermos decidir de acordo com aquilo em que acreditamos, nem que tenhamos de ir contra muitas coisas e muitas pessoas.

Se eu pudesse regressar ao passado, gostava de poder acordar nessa manhã de alegria, como quem acorda de um sonho formidável que afinal não é mais do que a realidade. 

Grandes liberdades

A curva 

A gata Christie

Boas intenções 

2 dedos de conversa

18.4.25

Despertador

 

É curioso que o tema seja despertador num dia em que ele não toca para mim. É raríssimo. Santa sexta-feira Santa.

A minha relação com os despertadores é gritante e longa. Não sou dessas pessoas cujo corpo está treinado para às 7h47 acordar e levantar da cama. Não. À noite, cada vez que me deito ponho o rádio despertador, daqueles dos anos 70, programado para as 6h30. Verifico, pelo menos duas vezes, que está na opção para tocar e que não vai ser com falinhas mansas e vozes bonitas da telefonia. Não, eu não sou boa para mim. Escolho a opção estridente (antes fosse tridente) para não me deixar embalar. Quando durmo desligo a máquina e, por isso, um despertador não me chega. Deito-me, programando o bicho histérico e começo a tratar do do telefone. Desde que tenho um telemóvel novo, toca com barulhinhos de uma floresta cheia de passarinhos. De maneira que o ponho a tocar antes do outro. Está tudo estudado com estratégia, o radio despertador é a minha última chance de chegar a horas ao trabalho e, graças a Deus, chego sempre, salvo raras excepções que nada têm a ver com o tema de hoje. 

Este trabalho é quase só de verificação porque, na verdade, tudo está feito para tocar todos os dias, de maneira que até nos raros Domingos em que ele pode não tocar, desata aos gritos e isso também sucede quando dormia em casa do meu namorado. Nestas alturas, ele tornava-se o terceiro despertador, acordando-me do meu sono profundo para que desligasse o telefone, que era de madrugada e que eu estava de folga.

E o pior nem é pôr o despertador às 6h30 para na realidade me levantar às 7h45. O pior é que nesses 75 minutos os despertadores tocam a cada 10 minutos desencontrados. De maneira que vou dormindo de cinco em cinco minutos, carregando no snooze até de costas, com o dedo mindinho e, se necessário,  com o pé... eu sei lá... às vezes nem me lembro de ter tocado em botão nenhum.

As pessoas, intrigadas, perguntam-me porque é que eu preciso de fazer isto, porque é que o meu snooze não pode tocar só uma vez? Porque se eu me levantar 'de repente' o meu corpo reage como se tivesse levado um susto e isto é mesmo fora de brincadeiras.

Estou sempre alerta. Aliás, sou injusta quando digo que o meu corpo não está programado para acordar à hora certa. Pode não acordar aos 47, mas  o meu inconsciente sabe programá-lo para me levantar no último minuto que me permite chegar a horas a qualquer lado e para respeitar todo o tipo de deadlines, se quisermos falar de despertadores sem som.

O meu despertador é o meu inconsciente, mas precisa sempre de uma ajudinha. Ou duas.

PS levanto-me nesta sexta-feira Santa de pastelanço total para ir ao quarto tirar uma fotografia que sirva para ilustrar esta publicação e, pela primeira vez, reparo no desenho do bonequinho ao lado da palavra Snooze. E tenho a certeza que este despertador foi feito para mim


O despertador da Calita

O despertador da Carla

O despertador da Marisa

O despertador da Helena

11.4.25

Purgatório

 

O meu primeiro contacto com o purgatório foi através do Gil Vicente. Até ali nada sabia dessa palavra nem de barcas.

Desde então, sempre que estou em compasso de espera para alguma coisa digo com frequência que estou no purgatório, como quem está na paragem e espera pela carreira.

Esta semana falei com uma leitora da mediateca.

Perante as suas olheiras indisfarçáveis, permiti-me meter-me na vida dela. Já a vejo há talvez uns 5 anos, pairando (é a palavra certa) por aqui, sempre de malas atrás, de trabalho em trabalho, de casa em casa, coisas que nunca dão certo. Espanta-me a resiliência dela e a incapacidade de se questionar, que pude observar noutros contextos.  Pergunto-me que pessoa será para além do que lhe posso ver, para a vida lhe ser tão incerta. Está sempre à espera. Espera um novo emprego, espera um apartamento que não tenha bolor, que não tenha colegas de casa indelicados, que não tenha loucos, que seja relativamente grande, que tenha uma cozinha para receber os amigos com pompa e circunstância, porque ela dentro da mala, também guarda sonhos. Está cansada, vejo-lhe no rosto envelhecido, embora esteja longe de parecer a idade que tem. As malas andam com ela e o sorriso também, mas nada a tira do purgatório. Por vezes parece ir dar o passo em direção à glória, mas logo as chamas a apanham.

 

Escrevo estas linhas, mais do que as duas primeiras que estavam programadas e lembro-me do sacrifício de ter que ler Gil Vicente. Atirem-me tomates, mandem-me para o inferno. Mas graças ao coletivo e ao tema desta semana fiquei com vontade de ir revisitar o pai do teatro.

Mais meninas à espera no purgatório

Boas intenções

Panados com arroz de tomate 

A curva

A gata Christie 

Gralha Dixit

2 Dedos de conversa