Eram 11h28 o meu irmão estava a ligar-me e eu a dizer "estou? estou?" e ele nada.
Desliguei e compus o número dele. O telefone descontava os segundos de quem atendeu, mas nenhuma voz do outro lado. Poucos minutos depois dlim dlom, e minha vizinha tocava -me à porta a perguntar se eu tinha luz. Acendi o interruptor do corredor e nada. Na cozinha a mesma coisa.
Nesse momento ainda havia internet, o grupo WhatsApp do trabalho indicava falta de energia. De Santos para São Domingos de Benfica ainda é uma distância larga e não era coincidência.
Entretanto as notícias começaram a chegar. Decidi ir à rua comprar uma moldura. Há muito que tinha isso na minha lista de coisas a fazer e, numa manhã sem luz, achei que era o momento certo. Deixei lá o desenho e fiquei a espera do orçamento, que a falta de electricidade não permitia no momento. Achei que talvez fosse bom ir ao supermercado. A minha filha, do alto dos seus 10 anos, há tempos tinha-me falado do kit de sobrevivência e eu achei que tínhamos tempo de pensar nisso. Os miúdos hoje pensam em mais coisas do que nós. Fui andando pelas ruas, estavam muito movimentadas. Tanta gente que deve estar em teletrabalho, portanto, invisíveis para a vizinhança e que aparece em casos de emergência. Porém o movimento não indicava qualquer preocupação, apenas prevenção ou oportunismo para fazer uma pausa no trabalho enquando o dia não volta ao normal.
Muita gente à janela, os vizinhos a conversar, ora à porta da rua ora de janela para janela. Toda a gente tem suposições mas ninguém sabe ao certo o que se passa. Fala-se em ataques cibernéticos, fala-se em falha na Europa, fala-se em 72h possíveis sem electricidade. Mas seria verdade? Ninguém sabia.
Os cafés da freguesia continuavam abertos, contrariamente aos supermercados que logo fecharam portas. As pequenas mercearias de rua, muitas vezes exploradas por comunidades de outras nacionalidades, salvavam os mais ansiosos, como em tantas outras circunstâncias. Nas frutarias já não vendem frutas nem legumes ao kg, mas apenas em caixas ou por sacas, porque não têm forma de pesar. Ao meu lado na rua, passa um senhor com uma balança antiga, de ponteiros. As pessoas desenrascam-se e é incrível assistir a essa capacidade.
As lojas dos vizinhos chineses, previdentes, já têm as velas, os isqueiros, as pilhas e as lanternas em cima do balcão dos pagamentos. Os multibancos estão kaput, não há dinheiro para ninguém. Quem tem notas debaixo do colchão, hoje, é que se safa. O nosso Sherif ainda teve multibanco algum tempo. Pessoas que têm sempre os aparelhos carregados.
Há fila em todo o lado e uma sensação de déjà vu.
A tarde vai decorrendo, o tracinho da bateria do telemóvel vai diminuindo. Eu leio e descanso, é tudo o que posso fazer. Também durmo a sesta. Quando acordo lá fora está tudo na mesma, só que agora já não temos dados móveis. Estamos totalmente desconectados do mundo.
Não sabemos o que se passa. Os semáforos não funcionam, ouço muitas ambulâncias. Decido ir buscar a minha filha mais cedo do que tinha previsto. Pelo caminho vejo as ruas ainda mais cheias do que de manhã. Não há cafés para beber, mas as mesas enchem-se de cervejas, as pessoas juntam-se em frente às pastelarias e restaurantes. Há garrafas de vinho e cálices em cima das caixas de electricidade e pequenos ajuntamentos, nesses sítios improváveis também.
De repente somos seres sociais. Sem telefone, nem computadores, nem redes sociais voltamos a ser seres sociais, vamos ao encontro de pessoas que conhecemos e que não conhecemos. Precisamos desse contacto, de saber , de trocar ideias com pessoas que nos liguem ao mundo.
Sem luz, Lisboa parece estar em festa. Até nos bairros mais familiares e ditos envelhecidos. Percebemos que afinal temos vizinhos que nunca tínhamos visto. Falamos com a senhora que está à janela, de expressão assustada e dizemos-lhe que não se preocupe, que está tudo a voltar ao normal, que a electricidade já chegou a Odivelas e aos poucos chegará aqui. E como é que sabemos isso? Porque durante esta abstinência a rádio nunca nos deixou, esteve sempre connosco. Como as velas, como os livros, como os jogos de cartão e os livros de pintar.
Vou deixar uma amiga da minha filha a casa e ao voltar vemos a Estrada da Luz iluminada. Com um nome destes devia ter prioridade. Chegamos à nossa rua já com candeeiros acesos também. Mas as vozes do convívio não foram para casa. Ficaram ainda a ecoar.
Apagam-se as velas.
Amanhã tudo deverá voltar ao normal
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