cela me rassure d'avoir la confirmation qu'il est des choses qui demeurent intactes * philippe besson

one of the secrets of a happy life is continuous small treats * iris murdoch

it's a relief sometimes to be able to talk without having to explain oneself, isn't it? * isobel crawley * downtown abbey

carpe diem. seize the day, boys. make your lives extraordinary * dead poets society

a luz que toca lisboa é uma luz que faz acender qualquer coisa dentro de nos * mia couto





14.6.25

Não somos iguais


Sinto uma bipolaridade nisto da inspiração para escrever. Não me acho uma pessoa opinativa, mas tenho picos de necessidade de ter coisas para dizer e picos de morte, se é que isto pode existir. Por vezes, não tenho nada a dizer sobre o tema sorteado e quando começo a escrever pareço um poço de riqueza onde colares, anéis, pulseiras e brincos dos mais preciosos materiais servem para ornamentar os textos. A maioria das vezes tudo o que escrevo só a mim diz respeito. São histórias minhas. Não sei inventar histórias. Sei ficcionar realidades, mas não inventar do zero. Quando gosto de personagens de livros, fico a pensar na mestria de se saber imaginá-las de A a  Z, de construí-la de lhes atribuir valores e depois de fazer com que todas as acções respeitem essa criação. Ou não. Talvez seja isso que nos desiluda. Uma personagem daquelas nunca poderia ter feito aquilo. Não gostei do fim do livro, o autor podia ter feito assim ou assado porque corresponderia mais às caracteristicas da Elisabete (caramba, que raio de nome. Decerto foi porque a minha filha me dizia agora que a minha mãe e a amiga de infância, quando se encontravam para almoçar só falavam de rainhas e princesas). 

Nos livros sou assim, conservadora. Só sinto prazer em ler coisas nas quais me consiga projectar. Às claras ou às escuras. Quero que aquelas pessoas todas dos livros, segundo as descrições do autor, sigam o caminho que eu, secretamente, imaginei. Por vezes, nem tenho caminhos desenhados, mas sei qual é que não devo seguir. Naturalmente adoro quando o rumo da história está para além da minha imaginação. 

Na vida real sou outra. Aceito os caminhos todos, gosto de ir por estradas que não conheço, de encontrar pessoas que me fazem pensar que são umas e depois são outras. Porque a vida não tem 234 páginas e acaba, tem um número capítulos infinitos até nos cansarmos e nos esquecermos daquele livro e daquelas pessoas.

Tenho lido muito nos últimos dois meses. Há pessoas que têm a teoria de que o tempo para ler se arranja. Mas disponibilidade mental não. E, quando se fala de ter tempo para ler, é dessa disponibilidade que se trata. Esta semana estou de férias. Só me dou conta de quão urgente eram estes dias para mim quando acordo todos os dias perto do meio dia, quando me apercebo que me apetece muito ler, que me apetece ver séries (uma novidade na minha vida pacata), que me apetece sair, um bocadinho só, no bairro. Saio para sentir o perfume desta Tilia, para beber um café, fazer compras e voltar para o sofá. Ontem estive uma hora de volta da cozinha a lavar, estender, limpar, pôr a loiça na máquina, limpar a caixa do gato, por mais roupa na máquina, lavar o chão. Penso que é a única ocasião em que sou capaz de me abstrair. O resto do tempo vivo alerta, com crises de ansiedade controladas por fármacos, porque a psicoterapia não pode tudo. Pelo menos comigo.

Não somos iguais. A Joana que lê e a Joana que vive são diferentes. Como se ler não fosse viver. Pelo menos os livros têm pontos finais e esses sinais gráficos mudam tudo. Nas histórias como na vida.

Não são iguais:

Panados com arroz de tomate

Quinta da Cruz da Pedra

Gralha Dixit

A curva

10.6.25

O homem sem nome


Eu estava sentada a ouvir o Philippe Claudel cujas intervenções eram intercaladas pela tradução simultânea. Olhei para o lado e vi um casal de chapéu de chuva preto a subir pela ala esquerda do corredor da direita.
Na praça azul, que tinha um toldo da mesma cor, corria um ventinho fresco pelas pessoas que estavam sentadas à sombra. Mas nas laterais, o sol batia quente. 
Pensei que aquela moda de se andar de guarda-chuva ao sol me chateava. Sempre houve sol em Portugal e agora toda a gente tinha decido subverter o uso do impermeável.

O homem virou-se. Reconheci-lhe o perfil, o boné, a magreza. Vi uma imagem que nunca tinha sido capaz de convocar, a de um bebé junto ao peito, a que tantas vezes me colei, em anos sem futuro, mas que ainda assim duraram anos. Não foram poucos.
Fui capaz de sentir ternura. Quantas vezes quis que o meu corpo todo se descolasse daquela pele, que o meu coração batesse por outra criatura, boa, capaz, recíproca.
Noutro tempo teria enviado uma mensagem que lhe desse a entender que estava por perto, como alguém que espreita atrás de uma árvore. Mas achei que aquela imagem devia ser suficiente para não voltarmos a repetir mensagens inesperadas, em qualquer dia do ano, a qualquer hora da noite. Era preciso apagar isso do presente. 

Tantos anos alimentados pela incerteza, pelo segredo, pelo imprevisto, pelo mistério. Nada concreto, só palavras que se escapavam pelos dedos, como a água que nos lava as mãos, e que foram tão capazes. Mas nunca suficientes. 
Nesses anos todos desejei que me arrancassem o musculo. Não queria mais sentir e agora, estava ali a olhar, com todo o tempo do mundo, o vento a trazer-me dois fios de cabelo para a frente e o perfil dele a olhar para o palco. Estou imóvel na cadeira, vejo-lhe o olhar inexpressivo. Sempre o mesmo. Mas fixo.
Sinto alívio e pergunto-me como fui capaz de gostar tanto daquela pessoa. Até à destruição. 

Às vezes acho que faço desta história mais do que aquilo que ela realmente foi.
Mas conformo-me e aceito que é impossível subestima-la, porque ela me trouxe coisas que nunca tinha conhecido antes.