7.2.25

Narcisa Fatela

Não posso ver um espelhinho que saco logo do aparelho para me fotografar. 
A escritora Ana Teresa Pereira diz que a nossa imagem é para nós o maior dos mistérios. Esta passagem vive dentro de mim.
Os espelhos têm um significado ambivalente, permitem avaliar a beleza e os defeitos. Quantos não ouviram na escola “nunca te viste ao espelho?”. Os espelhos são magníficos e misteriosos. Dizem, em silêncio. Nunca saberemos se o reflexo corresponde à verdade, a não ser que no-lo digam e ainda assim não saberemos se dirão a verdade.
É no espelho que vejo que tenho um sinal novo no rosto, é no espelho que me penteio e que ponho o gancho nos cabelos, é no espelho que vejo que o bâton ficou borrado. É também no espelho que vejo as minhas curvas, mais largas ou mais acentuadas, é nele que posso ver como são os meus gestos quando falo, como sorrio, como faço caretas, como se me rasgam os olhos quando me rio com vontade.
É o espelho que me mostra partes de mim que os meus olhos não alcançam.
É também nele que vejo se tenho comida nos dentes, se tenho macacos no nariz, migalhas no queixo.

Vejo-me ao espelho, a maior parte das vezes, sozinha. Por vezes disfarço, porque diz que olhar para o espelho não é bom. Como uma maleita. Eu tenho muita pena desse parecer, porque adoro espelhos, gosto de saber como sou fisicamente, como poderei ser de outras maneiras, se quiser fingir ser outra pessoa. Tenho essa curiosidade. Por vezes, penso que gostava que houvesse um espelho no meu coração que me permitisse conhecer-me melhor por dentro. Um retrovisor interior, para olhar para o passado, um retrovisor lateral para ver os ângulos mortos. 
Conforta-me a transparência dos espelhos, o reflexo. Às vezes faço um jogo: sorrio para o espelho,  fecho os olhos, registo essa imagem, e fico a pensar se é também daquela maneira que sorrio para as pessoas ou se existe uma forma particular de seduzir o espelho que cuja ‘tecnica’ não usamos com os outros.

Sei que há sorrisos ensaiados e admiro quem consegue fazer isso. Considero que é preciso alguma mestria para ter capacidade de desdobramento e memória para saber reproduzir essa imagem nas mais variadas circunstâncias.
No início dos meus 40 interessei-me muito por espelhos. Nessa altura vi uma exposição que esteve na Gulbenkian, comprei o livro História dos espelhos, da Sabine Melchior-Bonnet, requisitei L'attrait des mirrois na biblioteca. Um espelho é uma espécie de abismo, sem altitude, é a falsa visão de um oásis, o 'assombro por aquilo que lá não está'.
Lembro-me de que as crianças adoram ver-se ao espelho. É uma bonita descoberta, esse contato exterior com o eu.

Volto à conhecida imagem de Narciso. O encontro com o espelho é um encontro íntimo, secreto, silencioso, surpreendente. Leio as linhas de cima e constato que só falei de mim. Estou enamorada por mim. Se isso fosse verdade… e agora? Vão por água abaixo todas as teorias? As psicanalíticas e as outras? Vão dizer que ela diz que não está enamorada, mas afinal está, ela é que não sabe. Os outros é que sabem quem nós somos. Eles inventam teorias sobre nós, através da observação, da repetição, das suas próprias ideias, das suas experiências. Eles constroem-nos e destroem-nos. E nós fazemos o mesmo. Somos espelhos uns dos outros. Uns sem truques por trás, como o espelho básico que se compra na loja dos vidros, outros com efeitos especiais, como os da feira Popular, outros enganadores, como os dos provadores.

Afasto-me agora deste encontro a sós. Por vezes não estou sozinha no espelho, tenho histórias com outras pessoas, mas nunca encontraria as palavras certas para falar da beleza do erotismo no espelho.


PS nos anos 90 trabalhei numa livraria em Benfica. Um dia o telefone tocou e uma senhora pediu para que lhe reservássemos um livro. Perguntei-lhe o nome para apontar na reserva e ela respondeu Narcisa Fatela. Nunca saberei se se tratava do seu verdadeiro nome, mas soube que essa conversa telefónica me ficaria para o resto da vida.
 
Espelhos é o segundo tema de um colectivo cuja casa abre em breve. O pimeiro tema foi espalhar-se ao comprido. Escrevem sobre espelhos

e mais, que já vêm aí
 

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