cela me rassure d'avoir la confirmation qu'il est des choses qui demeurent intactes * philippe besson

one of the secrets of a happy life is continuous small treats * iris murdoch

it's a relief sometimes to be able to talk without having to explain oneself, isn't it? * isobel crawley * downtown abbey

carpe diem. seize the day, boys. make your lives extraordinary * dead poets society

a luz que toca lisboa é uma luz que faz acender qualquer coisa dentro de nos * mia couto





21.3.25

Vizinhos

 

Quando penso em vizinhos a primeira imagem que me vem à ideia é a da minha rua, com a fileira de prédios de cada lado sobre 400m de comprimento, digo eu de cabeça.

No verão, o sol do final de tarde reflete-se nos vidros das janelas e os efeitos são maravilhosos. Os vizinhos estão de tronco nu à janela, as senhoras estendem a roupa (coisas que ainda custam a mudar), os cães vêm espreitar por entre as grades das varandas que não se transformaram em marquises.

Tirando os 10 anos que vivi em França, morei sempre na mesma rua, em São Domingos de Benfica. Não trocaria este bairro por nenhum outro e muito menos nos tempos que correm. Nasci aqui, cresci aqui. Sei os nomes dos comerciantes e alguns sabem o meu nome. Nestes anos, as pessoas que cresceram comigo e com o meu irmão nesta rua continuam a viver ali. É muito fácil convocarmos recordações de quando éramos crianças, de quando a rua ainda não tinha árvores, de quando não havia problemas de lugares de estacionamento e podíamos jogar ao lencinho no meio da estrada e andar de bicicleta quase de olhos fechados e com alguém em cima do volante.

Desde que nasci, no número 15 desta rua e até 2017 (data em que mudei para o número 5)  sempre vivi com os mesmos vizinhos. Não os esqueço. Eramos como família afastada a viver no mesmo prédio. Tínhamos mais proximidade com uns dos que com outros, como em todas as famílias.

O número 15 não tinha rés-do-chão. Tinha uma pequena porta onde, subindo os quatro degraus do patamar, alguns de nós guardavam as bicicletas. Mas este espaço servia essencialmente para a porteira, a D. Maria José, arrumar os baldes, esfregonas e produtos para lavar a escada.

No primeiro esquerdo morava a Dona Ângela, o marido, a Lena e o Rui. A dona Ângela era madeirense, o sotaque dela não enganava ninguém. Lembro-me, do alto do meu terceiro andar, olhar pra baixo e invejar-lhe a varanda espaçosa com espreguiçadeiras. Passavam muito tempo lá fora, sobretudo no verão. Eram vizinhos com sorte. O marido da Dona Ângela morreu, os filhos casaram e foram viver para outros lugares e por fim, faleceu a Dona Ângela, creio que por alturas da minha mudança.

No primeiro esquerdo moravam, e ainda moram, A Dona Delfina e o marido, a Ana e a Suzy. Penso nas razões que me fizeram esquecer os nomes dos vizinhos homens, mas não perco tempo com isso. De qualquer maneira, cada vez que se queria pedir qualquer coisa era: tenho de perguntar à minha mãe. Para coisas mais sérias era o pai que tomava as decisões. Neste apartamento que tinha uma varanda em espelho com a da Dona Ângela, esta família passava pouco tempo, mas havia flores e uma mesa branca, daquelas que parecem bordadas, com cadeiras à volta. As miúdas tinham um cão de raça boxer que passava muito tempo lá fora a ver quem passava. A Suzy tornou-se veterinária e a Ana contabilista. Com os anos aproximei-me mais da Ana e a Suzy acabou por juntar-se e ir viver para longe. A Ana tem gatos e adora-os. Passa as noites a fumar e a fazer contas por causa do trabalho. Sempre a achei um crânio. Quando a minha gata ficou doente, a Ana subia todos os dias de madrugada à minha casa com o seu robe para me ajudar a dar o comprimido à Sidonie, que recusava abrir a boca e se a abria logo cuspia o remédio.

No segundo esquerdo morava uma das minhas amigas de infância, a Sara. A nossa amizade vai ficar para sempre, ainda que não nos encontremos muitas vezes. A Sara vivia com a mãe, a Mariazinha, com o pai, o Vitor, com a caniche, a Nani e com o papagaio, o Jacob, que falava para a rua toda. O Vitor passava muito tempo a ensinar-lhe frases e palavras e o gajo aprendia. Era daqueles papagaios cinzentos, muito feios. Também tinham periquitos. A varanda da cozinha deles era para mim um tormento. Não gostava de pássaros eles queriam à força que eu fizesse festas na cabeça dos periquitos. Mas para quê, se eu não queria e me fazia impressão? Um dia a Mariazinha fechou-se comigo na casa de banho, para me fazer ver que aqueles pequenos bichos não faziam mal a ninguém. Sentou-me ao colo dela e de dentro do bolso da frente do avental tirou um pequeno pássaro amarelo. Desatei a berrar, não sei se pela traição se pelo confronto.

Aos fins-de-semana eles iam todos para o CCL na Ford Transit. Tinham lá uma daquelas tendas muitos grandes com quartos e sala e por vezes convidavam-me para ir com eles. Eu e a Sara eramos inseparáveis e todos os minutos que passávamos juntas, a ver o catálogo da la redoute ou a conversar pelos dias adentro, eram preciosos. Foi com ela que vivi os primeiros amores, foi a minha primeira confidente. Até quando fiquei com varicela fechada em casa ela subia e ficava do outro lado da porta a conversar comigo e a fazer pulseiras de fios coloridos. Sobre a Sara e a nossa amizade tinha tanta coisa para contar, mas não quero fazer esperar os restantes vizinhos.

No segundo esquerdo morava o vizinho Carlos que teve uma primeira esposa, creio que era a Susana. Eles eram muito discretos e raramente estavam em casa. Conheço-lhes os nomes porque muitas vezes o carteiro punha por engano as cartas deles na nossa caixa do correio e porque o vizinho Carlos era político. A Susana foi-se embora e veio outra senhora viver com ele. Era psicóloga e tiveram uma filha, a Rita. Mas eu estava a crescer e a Rita era bebe, de maneira que nunca brincámos. Anos mais tarde o vizinho assumiu um cargo político com maior visibilidade e, se não estava no andar de baixo, entrava-nos pelos televisores adentro.

No terceiro esquerdo morava o meu amigo Artur, a Teresa e o Vitor. Na família deles, o que mais me intrigava era que fossem primos direitos. O Vitor era colega da minha mãe e a Teresa tomava conta de crianças em casa. É uma profissão em vias de extinção. Por aquele patamar passou muita miudagem. Chegavam de manhã com os pais e iam embora ao final da tarde. O Artur terá sido o meu primeiro “namorado” e juntamente com a Sara, passávamos muito tempo a brincar. Um dia a Teresa foi para o hospital. Tinham de lhe ‘substituir’ o coração, que não funcionava bem e o Artur ficou a dormir em nossa casa. A Teresa voltou e o Artur voltou para o quarto dele. Lembro-me de nos momentos de zanga com os pais, o Artur às vezes levar uma trolitada que o mandava pelas escadas abaixo. Ele ria-se às gargalhadas. Já não sei se era ele que se atirava ou não, mas no meio da zanga nem os pais dele conseguiam ficar sérios.

Aos fins-de-semana, quando íamos à piscina do nacional e levávamos a Sara e o Artur era uma ramboia. Que felizes eramos.

No terceiro direito morávamos nós, Joana, João, Lila e o Zé.

O prédio tinha oficialmente três andares, mas no piso de cima ainda tínhamos, no quarto esquerdo, a Dona Maria José, que todas as noites tocava às nossas portas para levar os sacos do lixo e às sextas-feiras ao final da manhã lavava as escada. Nos dias de verão, por causa do calor, fazia a limpeza mais cedo. A Dona Maria José era casada com o senhor Mendes, sapateiro, que arranjava os sapatos dos vizinhos todos, nas traseiras do prédio, que eram quintais abandonados. Naquele que parecia pertencer-lhe tinha uma casinha onde fazia os trabalhos. Creio que chegou a ter galinhas. Aliás, a alcunha do filho, o Luis, que também vivia com eles, era o galinhas, mas não me recordo da origem desse nome. Reza a lenda que naquele terreno onde o senhor Mendes consertava sapatos, havia um poço onde tinha morrido uma criança afogada. Nunca cheguei a saber se era verdade, mas sonhei com isso muitas noites.

Por fim, no quarto direito, que foi uma parte do prédio construída sabe-se lá com que licenças, vivia a Dona Rosa que tinha um sotaque que assobiava e que passava roupa a ferro. Passava a nossa também, porque a minha mãe não tinha tempo para tudo. De maneira que à noite batia-nos à porta e levava cestos cheios de roupa com o cheiro da casa dela que era o da naftalina. Eu não gostava daquele cheiro, mas era importante vestir roupa engomada. A casa da Dona Rosa parecia ter uma assoalhada única ou talvez tivesse um quarto escondido. Era uma casa pequena. Ali no quarto andar, durante o verão, fazia um calor que tornava o ar irrespirável. A Dona Rosa tinha um senhor lá em casa por intermitência, não sei se pelo trabalho dele se pelo facto da relação deles ser assim mesmo. Moderna para aqueles tempos. A Dona Rosa foi a primeira vizinha do prédio a morrer. Teve cancro na mama. A casa dela não voltou a ser ocupada, nos tempos em que vivi no prédio e a minha roupa não voltou a ser engomada por mais ninguém.

 

Em 2017, o meu pai morreu e eu tive de deixar o prédio, porque a casa era alugada e o contrato estava em nome dele. O prédio foi vendido a uma pessoa que achou que o que aquela rua estava mesmo a precisar era de um Hostel.

O prédio começou a ficar degradado, sujo, construíram às quatro pancadas uma recepção, no espaço onde anos antes arrumávamos as bicicletas. Havia não sei quantos caixotes com lixo la dentro, faltava a luz no prédio. Havia barulho. Longe iam os tempos da vida saudável da vizinhança. Porém, alguns vizinhos continuavam a morar ali, partilhando patamares com pessoas que iam e vinham e faziam barulho. Ali não era a casa delas e estavam-se nas tintas para quem lá morava.

Uma tarde, em que fui buscar o correio a casa do Vitor, vi a porta da ‘minha’ casa aberta e pedi para entrar. A sala, onde eu e o meu irmão víamos o clube dos amigos Disney, deitados em cima um do outro no sofá, estava ocupada por quatro beliches cinzentos. O meu quarto e o quarto dos nossos pais eram umas ‘suites’ de extremo mau gosto. A casa de banho já não tinha banheira, a despensa era uma recepção. Fiquei desolada. Sempre achei que as casas pertenciam a quem morava nelas anos e não a quem tinha dinheiro para as comprar.

Felizmente para este prédio veio o COVID e o Hotel foi para o camandro. Creio que a vida voltou ao normal, mas sem a Dona Maria José que regressou à terra e que nos mantinha o prédio sempre impecável a troco do aluguer. Por vezes, pergunto-me se ainda estará viva.

Hoje continuam a morar no número 15 a doce Dona Delfina, a Ana, a Mariazinha e o Vitor.

São os sobreviventes. Vou-me cruzando com eles na rua, perguntam pela menina, pelo meu irmão e pela minha mãe. Estão velhinhos. Conheço-os há tantos anos.

 

estes são os vizinhos

da Carla 

da Marisa 

da Mariana

da Calita 

da Rita

19.3.25

avisos com penso rápido



 penso rápido. quem e que se lembrou de colar velocidade a um doi-doi

hoje o trabalho levou -lhe ao chiado, aonde já não ia há uns bons tempos. enquanto subia a rua da misericórdia e descia a rua do carmo pensava que não tinha perdido nada. tornei-me naquelas pessoas velhas que acham que antes é que era, que os cafés de hoje não têm alma, que são cheios de pirete e nómadas digitais agarrados ao telefone, conectados com o mundo inteiro menos com a pessoa que está à frente deles (como diz o luccini) e que os jovens não sabem fazer nada nem sequer ser. porém tenho uma filha e acho que ela é capaz de tanto. entrei na ponto das artes, na rua ivens, para comprar tinta acrílica e contra todas as minhas teorias fui atendida com excelência por uma rapariga nova. fiz o que tinha a fazer e regressei ao trabalho a pé, assistindo às mudanças que me empurram cada vez mais para o meu bairro onde, agora, se encontram granadas nos canteiros. 
os nómadas estão cá, o digital tomou conta de nós, mas ainda há discotecas com néons em ruas sombrias que nunca se livrarão da fama que tiveram em tempos de marinheiros e de portos e navios.
o fernando pessoa continua na mesma mesa, rodeado de turistas e de duas esplanadas. pergunto-me o que pensaria de lisboa, tal como está agora. teria interesse em conhecer aquela gente? as pessoas mandam parar o eléctrico no meio da estrada para que a fotografia saia como elas querem. olho para a porta onde tantas vezes 'sentamos os rabos' a comer os croissants com chocolate da benard.registo a imagem com os degraus e mando a fotografia para o pl. desço a calçada do combro, há pouca gente porque a tempestade está a aproximar-se. hesito em seguir pela rua do poço dos negros ou pela rua dos poiares de são bento e opto pela primeira. o zapata diz que está encerrado para férias e alguém assinala a apologia do descanso. logo a seguir indica encerramento por motivos de saúde. o coração também serve para aquela justificação. está escrito à mao, numa toalha de mesa, em papel. 
vou subindo e descendo os passeios estreitos para me desviar das pessoas. os meus cabelos voam com o vento. o zapata e a bénard são um pouco do que resta da cidade

14.3.25

Até o diabo se ria


Adulterei o tempo do verbo. 
Desde que escrevo neste Largo e com este Largo, multipliquei o meu índice de expressões. Tenho sempre o dicionário à mão e ando, na semana que antecede a publicação do texto sobre o tema, a magicar no que vou dizer. Acho que não sei filosofar sobre as coisas, embora me considere uma pessoa de filosofias de bolso. Para falar sobre os assuntos tenho sempre de ir buscar um qualquer caso que me tenha sucedido.

A minha filha tem uma colega nova, este ano, de quem gosta muito e com quem se ligou de amizade. A menina mora na nossa freguesia e a primeira vez que a mãe me mandou a morada para eu ir buscá-la para levá-las ao cinema fiquei para a minha vida. Antes de 2016 nunca tinha ouvido falar daquela rua. A partir desse ano, essa rua passou a viver em mim, na minha imaginação, nos meus sonhos, nas minhas saídas noturnas, no mistério, na imprevisibilidade, num desejo descontrolado. Ali vivia um homem que revolucionou a minha vida. 
No decorrer dos dias, das tardes e das noites, dava tudo para ter um pretexto para passar ali. Na verdade tinha-os porque, embora a rua me fosse desconhecida até então, muitas lojas e cafés de que gosto gravitavam em torno daquela morada. Nunca ousei ir para ali cirandar sem desculpa, com medo de ser apanhada. Quando para lá ia era por ter um pretexto válido.

Nesse fim-de-semana apanhei a pequena, que morava do lado oposto do passeio, uns números mais acima. As miúdas entraram no bólide e seguimos uns 30 metros. Abrandei a marcha e fiquei a olhar para os estores descidos, empoeirados cujas únicas cores que envergavam eram as da minha memória e, agora, as do painel que dizia vende-se. Segui caminho pensando nas voltas que a vida dá.

Noutra semana, voltei a ir buscar a amiga da minha filha para ir brincar lá a casa. As miúdas entraram no carro na galhofa e eu arranquei com lentidão, abrandando sempre em frente ao número 6. O painel tinha desaparecido. A casa fora vendida. Nesse momento, fui capaz de lhe sentir o cheiro, de imaginar com exactidão a tonalidade da luz àquela hora, dentro da pequena assoalhada onde se vivia. 

E porque não há duas sem três, no domingo passado voltamos a combinar brincar e jantar com esta amiga. Eu aguardava que a pequena chegasse e pensava em como as coisas são. Estava ali encostada ao carro, de perna cruzada, à paisana, a olhar para o bairro e para a janela,  sem me preocupar se era vista ou não. Antes queria todos os pretextos do mundo para estar ali, fosse a hora certa ou errada ou o sítio certo ou errado e agora o destino queria-me naquela rua, com memórias apagadas de uma casa que provavelmente já pertencia a outra pessoa. 

Saiu-me: até o diabo se ri!

Entrei no carro. Abrandei (sou uma rapariga de hábitos). Os estores da janela da cozinha estavam subidos. A casa estava habitada. Como nunca me livrei deste mistério quis deixar a dúvida no ar. Quem estaria ali dentro?

Sei que nunca poderei entrar nesta rua sem me lembrar desses loucos anos. 
E quando falo em loucura, não é maneira de dizer.

Outros diabos que riem:

um raio de sol


não fazia ideia de quão importante podia ser um dia de sol para mim.

há cinco anos ficávamos fechados em casa. foram tempos doidos, inimagináveis. a vida mudou desde então. mudaria de qualquer forma, mas mudou mais depressa. tivemos que reinventar muitas coisas, para o bem e para o mal. tenho a sensação que o COVID foi ontem, mas não. 
hoje de manhã quando falava disso com com a minha filha de 10 anos disse-lhe: tinhas 5 anos. C I N C O

nunca imaginei que um dia pudéssemos viver daquela forma. gostei da experiência desse tempo. tudo era precioso porque a morte podia estar no mais doce pacote de açúcar. continuámos a fazer as nossas coisas: íamos às compras, passávamos tardes no jardim do palácio do beau séjour, fazíamos pique-niques no parque do calhau. víamos os nossos amigos às escondidas, os vizinhos tornaram -se família, inventavamos mentiras por causas tão nobres como querer estar com as pessoas de quem gostamos.

depois disso o mundo tornou-se outro.

chovia no dia 13 de março à noite. eu tinha ido jantar com o manel à sereia, ali por trás da gulbenkian, e que entretanto fechou. quando saímos do restaurante não havia ninguém na rua, o cenário era assustador. praça de espanha e avenidas em volta desertas. 
também não voltaremos a ver a cidade daquela forma. 

acho.
espero.

ter a torre de belém só para nós foi épico 

7.3.25

Coração lavado

 
Pasmem-se mas tive de ir ver ao dicionário o que queria dizer coração lavado. Tinha uma suspeita, mas preferi lavar as mãos (já agora).
Sobre o que lá estava escrito a propósito de franqueza e bondade, tenho muito mais da segunda do que da primeira. Não digo mentiras, mas não sou franca porque há um peso nesta palavra que pode magoar os outros e se por vezes sou impaciente e impulsiva, quando se trata de magoar os outros, mesmo que sejam os meus piores inimigos, preciso de tempo. Preciso de engendrar um plano o que faz de mim uma pessoa não franca. Na franqueza não se perde tempo. Atira-se. Agora no que respeita a bondade saio à minha avó, à minha mãe, ao meu pai e a todas as pessoas da minha família, na realidade. Porém não parece. Tenho uma cara séria , franzo o sobrolho, faço boquinhas de lado que tiram toda a credibilidade à minha bondade. Ora bem, sobre coração lavado lembro-me de há uns tempos estarmos no centro comercial a descer as escadas rolantes. Como nos reels estava uma velhinha no vai não vai. Pois claro que e preciso alguma mestria para por um pé sobre algo em movimento, da mesma forma que é preciso mestria para saltar de um comboio que está rolando. A minha filha e a minha amiga iniciaram a descida e eu agarrei com força e doçura no braço da senhora e disse a sorrir, vamos as duas. E lá fomos. Chegando ao final do percurso a senhora agradeceu-me muito, a minha filha abracou-me e beijou-me o braço (the hand that rocks the craddle) e eu fiquei de coração lavado. Se é possível ficar de coração lavado com tão pouco? É. 
Senão vejam. 
Há uma semana estava no parque de estacionamento do fonte nova. O multibanco não funcionava para a senhora que estava a minha frente poder pagar a despesa. Perguntei quanto lhe faltava e ela respondeu 10 cêntimos. Abri a carteirinha de rede e dei-lhe a pequena moeda dourada. Ela agradeceu surpreendida. O que custa fazer isto? Nada. Porém torno-me mais humana e os outros também (dá-lhe madre Teresa). Paguei o meu estacionamento e entrei no carro de coração lavado.
Não é preciso abrir o peito e dar-lhe banho. É muito mais fácil que isso. 
Em caso de dificuldade e aproveitando o ano de São Pedro, que hoje me lavou os orgãos todos, é experimentar! Se não sabia o que era antes do texto, agora sei que é bom.
 
Mais corações lavados
 

2.3.25

Carimbo


Carimbos nos postais, nas cartas. Carimbos de tinta. Gosto de saber a data e o sitio onde depositam a correspondência, no posto do correio. Faz-me imaginar a vida das pessoas. É um pormenor muitas vezes inútil porque na grande maioria do tempo não se consegue ler as informações. A tinta vai-se esgotando. Mas inutilidades é comigo. Carimbos brancos, para coisas sérias. Carimbos de brincar, quando somos pequenos. Carimbos para personalizar envios. Há poesia nos carimbos, há um certo romantismo. Há uma espécie de cunho, de marca, de validação. E há, nessa certeza, algo que me agrada muito.
No sábado, no concerto dos GNR, o Rui Reininho cantava São unhas que gravam/As unhas que cravam/A pele em mim/Ana Lee. Pensei no carimbo. Uma marca na pele é um carimbo, uma tatuagem é um carimbo. 
Antes não gostava de tatuagens porque dizia que eram definitivas e que não gostava de coisas, que não nos deixassem voltar atrás. Porém, hoje, com mais idade, estas questões já não me fazem comichão. Hoje gostaria de ter uma marca na pele por cada episódio importante da minha vida. Muitos dirão que essas coisas se guardam na memória, que não precisam de se materializar, mas eu já não penso assim. 
E se vier a doença de Alzheimer? E se vier a demência? Onde ficam guardadas as memórias?
Estou aqui a discorrer sem jeitinho nenhum sobre o tema desta semana para dizer que o melhor e o pior carimbo é aquele que deixamos na vida das pessoas, quando nos cruzamos com elas. E isso é uma coisa da qual me esqueço demasiadas vezes.

Carimbo da Carla
Carimbo da Maria João
Carimbo da Mariana
Carimbo da Calita
Carimbo da Rita

21.2.25

Teias de aranha

 


O que dizer sobre esse fio fino e frágil, tão bem construído por um pequeno ser vivo.

Lembro-me de uma fotografia que tirei há uns anos na varanda da minha casa nos Alpes. Entre as madeiras húmidas das gotas de chuva, lá estava ela, perfeita, luminosa. Parecia desenhada.

Mas a maioria das vezes quando falamos em teias de aranha é para dizer que as coisas são velhas, para falar do tempo, das coisas fora desse tempo, estragadas pelos anos.

O que me faz pensar o tema desta semana é que as aranhas gostam da minha casa. Porque tem pó, tem cantos, tem coisas velhas e tem muita coisa. Assim que arredo o mobiliário, lá estão as teias a lembrar que devo fazer qualquer coisa por mim. Até as aranhas já se foram embora, deixaram as teias ao abandono. Esta casa já não serve para elas, foram viver para outra freguesia.

Nunca fui uma pessoa minimalista, sempre achei estranhas as casas que não têm nada à vista. Nada em cima da bancada da cozinha, nada por cima dos móveis da sala que faça imaginar que há vida ali e como serão os seus habitantes.

Não sou uma pessoa arrumada. O que me safa é que tenho a tal desorganização organizada. Tenho uma excelente memória visual que me faz olhar uma vez para as coisas pelo canto do olho para logo  registar onde estão e mais tarde encontra-las. Olha uma coisa que tenho de bom. Vou já apontar num caderno,  que vou encetar para este assunto.

Sucede que desde o covid a minha vida tornou-se um caos. Tive necessidade de encher-me de coisas. A mim e ao que me rodeia. Enchi-me de 20kg, fiquei mais velha, ganhei teias no cabelo. Enchi a minha casa de livros, de papeis, de brinquedos. Sinto-me bem a viver aqui. Não vejo o pó, não vejo a desarrumação, não vejo as teias de aranha que se instalaram na minha vida. Vivo numa teia e não sei sair dela.

No final do verão do ano passado arranjei um namorado. Foi breve, como sempre, mas foi muito bom. Não interessa o tempo, mas a força das coisas. Eu gostava que as coisas boas durassem muito tempo, mas o pior é que parecem ter mais força quanto mais breves são. Esse rapaz era uma pessoa extremamente arrumada e não se importava de vir à minha casa-teia-de-aranha. Sofria muito de alergias e nunca podia ficar comigo porque passava o tempo todo a espirrar e com dificuldades em respirar. Quando eu ia a casa dele, reparava no gosto que tinha pelo espaço que habitava. Comprava coisas novas, deitava abaixo paredes, mudava as coisas de lugar. Admirava-lhe isso e comecei a  sonhar num espaço melhor para a minha casa. Não sabia como fazê-lo porque não sabia por onde pegar.

Um dia em conversa com o meu irmão disse-lhe que gostava de dividir a sala em dois espaços, sala de estar e sala de jantar. Ele queria logo pôr mãos à obra, mas eu nestas coisas preciso de mentalização. Combinámos na segunda-feira seguinte. Deitámos fora moveis, papeis, objectos. Arredamos o mobiliário e aspirámos as centenas de teias de aranha e as histórias que faziam parte delas. Deitámos fora coisas e a memória dessas mesmas coisas. Testámos os móveis em todas as posições e mais algumas até que encontrámos o resultado certo da equação. No final, quando os sacos do que já não queria foram entregues à associação reto à esperança, quando os 20 sacos do lixo foram postos nos caixotes, quando pusemos as cobertas nos sofás e acendemos as luzes de todos os candeeiros, nem queria acreditar que era possível ter gosto pela casa. Não consegui perceber a razão de ter tantos e tantos papeis em casa na era da digitalização. Estava incrédula, os meus livros já não estavam empilhados em cima de todos os tampos da sala para agora aparecerem com as lombadas viradas para o exterior e não queria acreditar que agora tinha espaço para receber amigos em casa para jantar, em torno da mesma mesa.

Agradeço antes de tudo ao meu irmão a ajuda, mas sobretudo a delicadeza com que tratou este assunto, percebendo o problema dos acumuladores e a dificuldade que era para mim ter de me livrar de cada folha mais imprestável, que continha, porem, uma história. E agradeço às pessoas que passam pela minha vida, ainda que de forma fugaz, que me inspiram e me fazem querer ser, não sei se uma pessoa melhor, porque isto dito assim pode parecer estranho, mas que me dão vontade de recomeçar. E os recomeços trazem sempre entusiasmo.

Por agora chega de aranhas em casa.

 

Também as teias de aranha 

da Carla Rodrigues

da Maria João

da Rita Dantas

da Calita Fonseca

da Mariana Leite Braga

14.2.25

Atraso de vida


Começo a escrever estas linhas sem grandes ideias do que vou dizer. 
 
É São Valentim, e faço uma retrospetiva dos falhanços que tenho vindo a acumular em termos amorosos. Penso que este texto podia perfeitamente ter o título de um nome próprio, mas não seria justo estar a chamar atrasados aos outros quando eu sou a minha pior inimiga e como tal a grande atrasadora da minha vida.
 
Uso o insulto ‘atraso de vida’ na maioria das vezes no trânsito. Fora isso, resumo a coisa a ‘atrasado’. Se penso nesta expressão, literalmente, reparo que sempre que a pronuncio ou abrevio é para denunciar que aquela que não sou eu tem um ritmo diferente do meu. Ora porque deixa passar todos os carros e mais alguns, quando tem a prioridade, criando filas de trânsito a uma segunda-feira, para começar bem a semana. Ora porque demora a estacionar num espaço onde cabem três carros e então ‘saiu-lhe a carta na farinha amparo’. Enfim. Fora do transito sou uma pessoa adorável, com um rosto sério. Dizem que nunca me rio ou que me rio pouco. Que sou austera. Eu acho que tenho um coração gigante
 
Sou uma acelerada que passa muito tempo no sofá. Não sei como é isto, mas é assim. Tudo tem de ir depressa e o que não vai a essa velocidade atrasa-me a vida. Se estou no sofá o tempo abranda, é macio, morno, roça os preciosos segundos que antecedem todas as sestas. O sofá serve para atrasar a vida, para o relógio andar mais devagar, tal como na bomba da gasolina, em que os euros demoram mais a passar do que os segundos. As coisas que uma pessoa pensa, quando tem a pistola na mão.
Mas recorro ao espelhinho da semana passada. Olho para ele e penso que sou uma pessoa cheia de medos, que sofro de ansiedade crónica que tem de ser controlada com fármacos, que tenho dúvidas existenciais que ninguém compreende, que tenho pouca estima por mim. Na verdade, é tudo isto que me atrasa a vida. 
 
Pausa.
 
Há sempre uma diferença enorme entre aquilo que eu acho que se passa e aquilo que se passa realmente. A verdade é que eu ou não faço ou faço tudo à última da hora, por isso, chego sempre em cima do acontecimento a tudo. Sou pontual e sou capaz de coisas que nem eu sabia que conseguia fazer em tão pouco tempo.

O que me atrasa a vida é sofá. O que me atrasa a vida sou eu no sofá. Neste momento ele é o objecto mais precioso dos meus dias, o principal culpado de me ter tornado uma procrastinadora nata. Mais. Uma descuidada. Já me perguntaram com honestidade: mas porque é que não deitas fora o sofá? Tento imaginar como seriam os dias sem essa peça de mobiliário fundamental para os atrasos de vida e imagino-me enlouquecer, sentada no sofá do carro a chamar atrasados a todos no trânsito.
 
Atrasos de vida