Eu estava sentada a ouvir o Philippe Claudel cujas intervenções eram intercaladas pela tradução simultânea. Olhei para o lado e vi um casal de chapéu de chuva preto a subir pela ala esquerda do corredor da direita.
Na praça azul, que tinha um toldo da mesma cor, corria um ventinho fresco pelas pessoas que estavam sentadas à sombra. Mas nas laterais, o sol batia quente.
Pensei que aquela moda de se andar de guarda-chuva ao sol me chateava. Sempre houve sol em Portugal e agora toda a gente tinha decido subverter o uso do impermeável.
O homem virou-se. Reconheci-lhe o perfil, o boné, a magreza. Vi uma imagem que nunca tinha sido capaz de convocar, a de um bebé junto ao peito, a que tantas vezes me colei, em anos sem futuro, mas que ainda assim duraram anos. Não foram poucos.
Fui capaz de sentir ternura. Quantas vezes quis que o meu corpo todo se descolasse daquela pele, que o meu coração batesse por outra criatura, boa, capaz, recíproca.
Noutro tempo teria enviado uma mensagem que lhe desse a entender que estava por perto, como alguém que espreita atrás de uma árvore. Mas achei que aquela imagem devia ser suficiente para não voltarmos a repetir mensagens inesperadas, em qualquer dia do ano, a qualquer hora da noite. Era preciso apagar isso do presente.
Tantos anos alimentados pela incerteza, pelo segredo, pelo imprevisto, pelo mistério. Nada concreto, só palavras que se escapavam pelos dedos, como a água que nos lava as mãos, e que foram tão capazes. Mas nunca suficientes.
Nesses anos todos desejei que me arrancassem o musculo. Não queria mais sentir e agora, estava ali a olhar, com todo o tempo do mundo, o vento a trazer-me dois fios de cabelo para a frente e o perfil dele a olhar para o palco. Estou imóvel na cadeira, vejo-lhe o olhar inexpressivo. Sempre o mesmo. Mas fixo.
Sinto alívio e pergunto-me como fui capaz de gostar tanto daquela pessoa. Até à destruição.
Às vezes acho que faço desta história mais do que aquilo que ela realmente foi.
Mas conformo-me e aceito que é impossível subestima-la, porque ela me trouxe coisas que nunca tinha conhecido antes.
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