O meu primeiro contacto com o purgatório foi através do Gil Vicente. Até ali nada sabia dessa palavra nem de barcas.
Desde então, sempre que estou em compasso de espera para alguma coisa digo com frequência que estou no purgatório, como quem está na paragem e espera pela carreira.
Esta semana falei com uma leitora da mediateca.
Perante as suas olheiras indisfarçáveis, permiti-me meter-me na vida dela. Já a vejo há talvez uns 5 anos, pairando (é a palavra certa) por aqui, sempre de malas atrás, de trabalho em trabalho, de casa em casa, coisas que nunca dão certo. Espanta-me a resiliência dela e a incapacidade de se questionar, que pude observar noutros contextos. Pergunto-me que pessoa será para além do que lhe posso ver, para a vida lhe ser tão incerta. Está sempre à espera. Espera um novo emprego, espera um apartamento que não tenha bolor, que não tenha colegas de casa indelicados, que não tenha loucos, que seja relativamente grande, que tenha uma cozinha para receber os amigos com pompa e circunstância, porque ela dentro da mala, também guarda sonhos. Está cansada, vejo-lhe no rosto envelhecido, embora esteja longe de parecer a idade que tem. As malas andam com ela e o sorriso também, mas nada a tira do purgatório. Por vezes parece ir dar o passo em direção à glória, mas logo as chamas a apanham.
Escrevo estas linhas, mais do que as duas primeiras que estavam programadas e lembro-me do sacrifício de ter que ler Gil Vicente. Atirem-me tomates, mandem-me para o inferno. Mas graças ao coletivo e ao tema desta semana fiquei com vontade de ir revisitar o pai do teatro.
Mais meninas à espera no purgatório
Sem comentários:
Enviar um comentário